Dar Coisas aos Nomes | A matéria do tempo: recordar para se proteger do passado

Dar Coisas aos Nomes | A matéria do tempo: recordar para se proteger do passado

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Em entrevista ao C7nema, Dídio Pestana (n. 1978), músico e sonoplasta, nascido em Lisboa, diz “[…] que o Cinema é no fundo aquele momento em que as luzes se apagam e no qual automaticamente estás preparado para entrar noutro universo.” Com Sobre Tudo Sobre Nada, a sua primeira longa-metragem, quase documentário, esse outro universo revela-se, na verdade, como sendo ele próprion – ou o momento em que um percurso de oito anos da sua história recente, entre 2010 e 2018, converte o autor em personagem, transforma as visões pessoais em imagens comuns, isto é, imagens de todos.

O cinema funda-se, assim, como uma comunidade de imagens. Mas, neste caso, que tipo de imagens? Sobre Tudo Sobre Nada resgata do arquivo pessoal do realizador uma série de capturas em Super 8, percorrendo ex-namoradas, amizades, momentos em família, festivais de música por onde passou, entre a rebentação das ondas no Guincho, com o Cabo da Roca ao fundo, e a cidade de Berlim, passando ainda pela Dinamarca, Suíça, Itália, Guiné-Bissau, Argentina, Bolívia, Peru e o Chile. A subtileza do filme, contudo, não se esbanja em autocomplacência, nem na exposição narcísica das relações e dos afetos. O trabalho de montagem, como explica o realizador, consiste precisamente num ofício de escolhas, numa depuração daquilo que se pretenderá depois mostrar – e é exatamente aí, da voz off à sobriedade do texto narrado, que a montagem produz um efeito de verdade, uma figuração do íntimo, sem que a intimidade alguma vez nos surja invasiva, confessional ou em excesso.

“Partilhar isto foi uma escolha. Claro que há fragilidades, mas no filme aparecem as fragilidades que eu queria mostrar. Não é muito diferente daquilo que fazemos nas redes sociais. Quando publicamos uma fotografia ou partilhamos um momento entre amigos, há uma escolha. Se calhar escolhes fotografias onde estás melhor, ou onde o que queres comunicar se encontra mais claro. Eu comecei a olhar para mim mesmo como uma personagem dentro do meu filme e por isso nunca me senti demasiado exposto.” (entrevista concedida a Daniel Dias, in Infomedia, 7 de dezembro de 2018)

A particularidade das imagens filmadas em Super 8 é a de proporcionar um reencontro entre aquilo que vemos e as figurações imaginárias do passado, de uma imagem da memória (o intempestivo de uma aparição), que se desdobra e expõe o seu lastro anacrónico. E essa imagem da memória, longe de se apresentar nítida ou linear, só é acessível por caminhos turvos, pela deriva, por descontinuidades imprevistas e súbitos relâmpagos. O meio (e a montagem) faz-se mensagem. Ou a forma informa: dá-se a ver uma figuração do íntimo que mais íntima nos (a)parece por força dos materiais empregues, da feitura ostensivamente artesanal da película.

Rugosidades, uma espessura visual própria, cromatismos extenuados. O som da fita a correr, a errância dos travellings, a graça natural dos gestos de captura, com o que neles há de inesperado ou acidental. Porque as imagens que restam são estas. Os imponderáveis da vida levaram o sujeito a captar isto, e não outra coisa. São estes os rostos, os corpos, as cores, os lugares. As viagens, as (des)ilusões do amor, a namorada que adormecia onde quer que batesse o sol, o fascínio pelo mar, a morte do pai. Recordar tudo isto é compor uma certa forma de paisagem, dar a si mesmo um destino, protegendo-se do próprio passado (como nesta passagem de Os Anéis de Saturno, romance maior de W.G. Sebald, sempre à volta do tempo, da memória e da identidade: “[…] escrever é a única maneira que tenho de me defender das recordações que tantas vezes e tão inesperadamente me avassalam. Ficassem elas presas na minha memória e o correr do tempo torná-las-ia cada vez mais pesadas, acabariam por me esmagar”, p. 223). É dar uma ordem, ainda que frágil, titubeante, a esta convulsão de dias cuja mensagem parece ser a de que o tempo passou, mas, tendo passado, não deixa de ser dialético, no sentido pensado por Walter Benjamin: é um tempo em movimento, feito de saltos (e sobressaltos, abalos psíquicos, subterrâneos), pelo qual a possibilidade de uma história só se faz a partir da atualidade do presente, de um “inconsciente do tempo”, das múltiplas dinâmicas de que se compõe a experiência de se estar vivo (que é, igualmente, viver com outros, em partilha, algo que no filme se traduz pelo cruzamento de capturas fílmicas feitas não exclusivamente pelo realizador: “diversas vezes dava a câmara a outros para que pudessem filmar-me, porque no fundo o cinema é isso, uma partilha”).

Recordar nunca é, portanto, um resgate puro do que se viveu, na linha da ingenuidade positivista que busca no “puro” ou “resoluto passado” a presença indubitável deste ou daquele “facto histórico”. “O facto de uma coisa ter passado”, como explica Didi-Huberman, “não significa apenas que está longe de nós no tempo. Continua distante, é certo, mas o seu próprio distanciamento pode aproximar-se de nós […], qual alma penada, qual assombração” (in Diante do Tempo, 2017, p. 133).

Por isso, recordar é responder como a figura do historiador enquanto “trapeiro”, segundo Benjamin: “o trapeiro responde que tudo é anacrónico, porque tudo é impuro: é na impureza, na escória das coisas, que sobrevive o Outrora. Basta olhar para a própria textura dessa impureza para compreender o trabalho complexo do tempo” (Didi-Huberman, p. 131). E é ainda nessa qualidade de trapeiro, ou “apanhador”, daquele que procede a uma arqueologia dupla – tanto psíquica como material –, recolhendo trivialidades, grandes e pequenas, como pedras preciosas (“nada do que alguma vez adveio deve ser considerado como perdido para a história”, escreveu Benjamin), que o filósofo alemão destaca o espírito de colecionador que caracteriza as crianças. E atendendo ao caráter amador que o filme de Dídio Pestana tanto exacerba, não parece descabido desdobrar esse amadorismo constitutivo (as impurezas, os acasos, a íntima desordem dos dias) à luz da criança que cria um mundo novo a partir dos detritos que coleciona:

“Com efeito, as crianças têm uma propensão particular para procurar os lugares onde se efectua de maneira visível o trabalho sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos dejectos que provêm da construção, do trabalho doméstico ou da jardinagem, da costura ou da carpintaria. Reconhecem nos resíduos o rosto que o universo das coisas lhes apresenta unicamente a elas. Utilizam-nos menos para imitar as obras dos adultos do que para instaurar uma relação nova, cambiante, entre matérias de natureza muito diferente, graças ao que conseguem fazer delas no seu jogo. Assim, as crianças criam elas próprias o seu mundo de coisas, pequeno mundo no mundo grande.” (W. Benjamin, Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por volta de 1900, citado a partir de Didi-Huberman, pp. 130-1)

Pequeno mundo no mundo grande. Pequeno jogo da vida, onde se inventa uma mínima autoridade, um precário controlo, diante coisas que ousamos apelidar de nossas, no grande jogo da vida onde fatalmente somos coroados como perdedores. A glória de perder passará, em boa parte, por reconhecer estas sobrevivências como o nosso tesouro comum: imagens, recordações, artefactos, sobre tudo e sobre nada. Como seixos apanhados na praia sem qualquer pretexto a não ser a compulsão para afirmar um obscuro desejo de posse, de uma passagem de testemunho, de um vislumbre de beleza: qualquer coisa à qual se legue o estatuto de vestígio, de termos estado aqui – e de já aqui não estarmos. “E, no entanto, que seria de nós sem recordações? Não seríamos capazes de ordenar sequer os mais simples pensamentos, o coração mais sensível perderia a capacidade de se deixar cativar por um outro coração, a nossa existência não passaria de uma interminável sucessão de momentos sem sentido, o passado não deixaria rasto” (W.G. Sebald, Os Anéis de Saturno, 2013, p. 223).

Sobre Tudo Sobre Nada foi exibido esta sexta-feira, dia 10 de maio, na terceira e última réplica do terceiro episódio do Close-Up, na Casa das Artes de Famalicão. Antes da projeção, o filme contou com a presença e os comentários da socióloga Tânia Leão.

Referências

Trailer do filme Sobre Tudo Sobre Nada: https://vimeo.com/300995954.

Entrevista concedida a Hugo Gomes: http://c7nema.net/entrevista/item/50181-uma-conversa-sobre-tudo-sobre-nada-com-didio-pestana-do-cinema-intimo-a-intimidade-do-cinema.html.

Entrevista concedida a Daniel Dias: http://ulpinfomedia.pt/2018/12/07/sobre-tudo-sobre-nada-a-vida-partilhada-e-o-peso-da-memoria/.

Georges Didi-Huberman, Diante do Tempo. História da Arte e Anacronismo das Imagens, trad. Luís Lima, Lisboa, Orfeu Negro, 2017.

W.G. Sebald, Os Anéis de Saturno, trad. Telma Costa, Lisboa, Quetzal, 2013.

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Categorias: Crónica, Cultura

Acerca do Autor

Diogo Martins

Diogo Martins nasceu em 1986 e é natural de Nine, do concelho de Vila Nova de Famalicão. Doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade do Minho, iniciou em 2017 um projeto de pós-doutoramento intitulado "Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes". Interessa-se por poesia, literatura, cinema e fotografia, e mais ainda pelas relações entre estas e outras artes.

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