Lucky Star | Merlusse, de Marcel Pagnol

Lucky Star | Merlusse, de Marcel Pagnol

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Em Le Cas Pagnol, texto presente no livro fundamental Qu’est ce que le cinéma?, André Bazin escreveu que “Marcel Pagnol completa o ideal da Academia francesa para o americano médio, junto a La Fontaine, Cocteau e Jean-Paul Sartre. Mas Pagnol deve a sua popularidade internacional em primeiro lugar, e paradoxalmente, ao regionalismo do seu trabalho. Apesar dos esforços todos do Mistral, a cultura rejuvenescida da Provença permaneceu prisioneira da sua própria linguagem e folclore. Alphonse Dauder e Bizet conseguiram mesmo ganhar uma audiência nacional para esta cultura, mas ao preço de uma estilização que lhe roubava a maior parte da sua autenticidade. Mais tarde, apareceu Giono  e retratou uma Provença que era austera, sensual e dramática. Pelo meio, o sul da França dificilmente era representado para vantagem própria pelas “histórias marselhesas.” Foi a partir destas histórias, reunidas em Marius, que Pagnol conseguiu constituir o seu humanismo sulista; depois, sob a influência de Giono, deixou Marselha e foi para o interior, onde deu a Provença o seu épico universal, com a sua inspiração finalmente no auge, em Manon des Sources.

“Por outro lado, Pagnol tem gostado de colocar em questão a sua relação com o cinema proclamando-se a si próprio como o defensor do teatro filmado. Olhado deste ponto de vista, o seu trabalho é indefensável. Efectivamente, constitui um exemplo do que não devia ser feito na adaptação de teatro para o ecrã. Filmar uma peça ao transportar os actores do palco para um cenário natural, pura e simplesmente, é a melhor forma de arrancar do diálogo a sua razão de ser, até a sua alma. Isto não quer dizer que a transposição de um texto teatral para o ecrã seja impossível; pode ser feito, mas apenas com o preço de tomar toda uma série de precauções subtis cujo objectivo fundamental é preservar a teatralidade da peça, e não minimizá-la. Substituir o sol do sul de França por holofotes, como Pagnol parecia fazer, seria a melhor forma de matar um texto por insolação. Quanto a admirar Marius ou A Mulher do Padeiro declarando que o seu único defeito está em “não ser cinema,” iguala a tolice dos críticos que condenaram Corneille por violar as regras da tragédia. O “cinema” não é uma ideia abstracta, uma essência destilada, mas a soma disso tudo, através  da interpretação de um filme específico, alcança a qualidade de arte. Por esta razão, se só alguns dos filmes de Pagnol é que são bons, eles não podem ser bons e “não ser cinema” ao mesmo tempo. Em vez disso, são bons por terem certas qualidades que os críticos não foram capazes de discernir.”

Falando sobre as suas descobertas em DVD do mercado francês no seu blog, Bertrand Tavernier detém-se sobre o filme que o Lucky Star – Cineclube de Braga apresentou por esta época de Natal de 2018, chamando-lhe “outra obra-prima, Merlusse, um dos mais belos Pagnols. Sem o «folclore» a que se reduz demasiado facilmente o autor de Angèle: local de Canebière, de sol, de matos, de grilos, de esplanadas de café. A acção desenrola-se num colégio com paredes desvanecidas, num dormitório, com corredores sinistros. Fala-se da solidão, do abandono, da fealdade que faz medo, que repele. E, claro, como é um conto de Natal, da redenção. Pagnol usa de forma revolucionária os cenários naturais (ele revestiu uma escola com uma equipa muito ligeira), o som directo e reinventa o cinema. Local também já não de vedetas célebres. Merlusse é o excelente e o notável Henri Poupon, geralmente limitado a papéis secundários e que como Delmont ou Blavette nunca parece interpretar. Esperamos agora o genial Joffroi. Rellys é formidável como homem de limpezas.”

No “Dicionário do Cinema”, Jacques Lourcelles escreve que “se tivéssemos de designar apenas um filme para demonstrar o génio de Pagnol, o seu método, o seu conhecimento íntimo dos meios e das possibilidades do cinema e a riqueza e a universalidade das suas personagens, podíamos escolher este Merlusse, obra totalmente original a meio caminho entre a média-metragem e a verdadeira longa-metragem. Quanto ao método, ele é claro: o autor investe num lugar real (o liceu de Marselha) que, de certa forma, e como a Provença das suas obras mais célebres, vai contar ainda mais que as personagens; uma pequena equipa enfia-se no local modificando-o o mínimo possível e, no interior desses espaço onde a verdade já exala por todo o lado, Pagnol filma um pequeno drama, verdadeiro condensado de paixões humanas descritas num idioma admirável e sóbrio. Merlusse fornece a prova dos nove do génio de Pagnol porque este filme sem estrelas, sem sol e em que as personagens estão aprisionadas, extirpadas do seu ambiente natural (e do que é geralmente chamado de universo de Pagnol), dispensa a mesma emoção, atinge a mesma força que Angèle ou La fille du puisatier e surpreende o espectador com as mesmas interpretações poéticas, variadas e precisas dos actores. Merlusse também é um filme sobre a fealdade, a diferença, a crueldade e o abandono, tudo coisas de que o cinema não falava de bom grado na altura em que Pagnol o escreveu. Por fim, o filme obedece à tradição do conto de Natal que quer que os acontecimentos evocados a desenrolar-se durante essa noite encantada modifiquem de forma positiva a vida das personagens da história, sobretudo quando elas estão desamparadas e tristes.

Para assinalar o Natal de 2018, depois de It’s a Wonderful Life (2016) de Frank Capra e Os Sinos de Santa Maria (2017) de Leo McCarey, o Lucky Star – Cineclube de Braga apresentou Merlusse, do realizador Marcel Pagnol. O ponto de encontro foi o estaleiro cultural da velha-a-branca.

Sinopse:

Na véspera de Natal num colégio em França, depois de se reunirem os miúdos no pátio para os pais os virem buscar, e depois dos professores partirem também para passar a consoada com as respectivas famílias, o professor Blanchard, chamado maldosamente de “merlusse” pelos alunos, oferece-se para passar a quadra festiva com os rapazes órfãos ou abandonados pelas famílias.

“BIBLIO: argumento e diálogos in « La Petite Illustration » (1935). Em volumes pela Fasquelle (1936). Nas « OEuvres dramatiques » (Gallimard, 1954). Nas « OEuvres complètes » (Éditions de Provence, tomo III, 1967, Club de l’Honnête Homme, tomo IV, 1970). Também nas Éditions Pastorelly, 1974 e Presses Pocket. Prefácio soberbo consagrado a Henry Poupon, recuperado no volume « Confidences » (Julliard, 1981, Presses Pocket, 1983). Descontente com o som, Pagnol rodou o filme duas vezes (Natal de 34, Verão de 35).”

Obs: Este texto foi originalmente publicado em Lucky Star – Cineclube de Braga, tendo sofrido ligeiras adequações para a presente edição.

 

Ligações:

Lucky Star – Cineclube de Braga: homepage / facebook

 

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Categorias: Cultura

Acerca do Autor

João Palhares

Natural do Porto, João Palhares editou os dois únicos números da revista portuguesa Cinergia, colaborando ainda com revistas estrangeiras como a italiana “La Furia Umana” ou a “Foco – Revista de Cinema”, do Brasil. Em 2015, fundou o Lucky Star com José Oliveira, cineclube em que também programa e para o qual escreve folhas de sala, colaborando ainda com traduções. Foi colaborador do site “À Pala de Walsh” entre 2012 e 2015.

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