A guerra é sempre fria

A guerra é sempre fria

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Para quem viu Ida (2013) e não fixou o nome do realizador, ao assistir a Cold War terá imediatamente sentido, como quem se coça sob uma segunda pele que adivinha ter nos entretantos, a presença espectral de algo familiar: um estilo de composição da imagem, o enquadramento em baixo relevo dos planos e, sobretudo, dos rostos, ainda para mais nimbados por uma expressividade visual, a roçar o clássico, que é indissociável da imagem a preto e branco. Em Cold War, os efeitos do pós-guerra na vida atribulada de um casal parecem desafiar com este último o papel principal do filme. Ele, Wiktor, um pianista; ela, Zula, uma aspirante a cantora. Conhecem-se num casting para produzir um espetáculo musical cujo objetivo é dignificar os sons da Polónia, mas que acabará, a contragosto, por servir de orquestra à propaganda soviética.

Os jogos de política, imiscuídos na música que permeia os diversos contextos onde ela ganha corpo e expressão, afetarão implacavelmente os destinos do casal, nos seus jogos de sedução, nos dissabores, nas cenas de ciúme, na violência que tanto descamba para a agressão física como para a furiosa liberdade do sexo. “Contigo vou até ao fim do mundo”, murmura-lhe Zula, nos primeiros momentos do amor, corpos deitados ao relento do campo. “Mas há uma coisa que tenho de te contar”. E essa coisa terá tantas faces, ácidos e gumes quanto as convulsões do tempo e do espaço o permitirem, durante um período de quinze anos, da Polónia à Jugoslávia, passando por Berlim e Paris.

No inferno do amor faz sempre frio

Uma coisa, no entanto, parece fatal: querem estar juntos, mas não se suportam por muito tempo. Amam-se brutalmente, mas o tempo que lhes coube viver não pactua com falsas ou brandas promessas de idílio conjugal. O amor, parece, não é a solução: é simultaneamente o crime e o castigo. (E não pude evitar lembrar-me, enquanto assistia à tensão amorosa entre os dois, do casal de A Linha Fantasma, de Paul Thomas Anderson, ainda que neste a perversão dos afetos seja levada a outros mais recônditos horizontes; e ainda o filme La La Land, que, não obstante o frenesim de cores e de espalhafato musical à Hollywood, nos antípodas deste Cold War, tem no fim aquele trago amargo que nos obriga a engolir, como a derradeira facada que a realidade inflige nas costas da mais ingénua fantasia. Mas é como se nos dissesse: antes a facada do que a fachada.)

Neste inferno faz sempre frio – mas é inferno na mesma, dividido a meio por uma cortina de ferro. E qualquer canção – do folclore mais nostálgico à pulsão esfuziante do rock americano – assombra este par, sempre, com o eco trágico de um canto de cisne.

Cold War, sim, é um dos melhores filmes do ano

Concluindo. O filme chama-se Cold War (Guerra Fria) e é realizado por Paweł Pawlikowski, que dedica o filme aos pais e às suas experiências de vida, nas quais o filho se viria a basear. Passou esta quinta-feira, dia 13 de dezembro, no pequeno auditório da Casa das Artes, pelo Cineclube de Joane. E poder assistir em grande plano à exuberância talentosa daqueles dois atores – Joanna Kulig e Tomasz Kot – foi nada menos que testemunhar, ao nível das epifanias e demais milagres, o que é a glória do cinema a fazer-se cinema. O esplendor refeito em imagem e a realizar-se diante nós, com o peso de todos os segundos ponderado magistralmente, sem pontas soltas, nem derivas secundárias. Chega-se ao fim e apetece dizer: isto, sim, é um filme. Um dos melhores de 2018.

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Trailer do filme: https://www.youtube.com/watch?v=8ImvkXgGVWw

Imagens: https://www.imdb.com/title/tt6543652/

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Categorias: Cinema, Cultura

Acerca do Autor

Diogo Martins

Diogo Martins nasceu em 1986 e é natural de Nine, do concelho de Vila Nova de Famalicão. Doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade do Minho, iniciou em 2017 um projeto de pós-doutoramento intitulado "Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes". Interessa-se por poesia, literatura, cinema e fotografia, e mais ainda pelas relações entre estas e outras artes.

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