As feiras medievais e os problemas da recriação histórica em Portugal

As feiras medievais e os problemas da recriação histórica em Portugal

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Há, nos tempos que correm, forte profusão de feiras medievais e outros eventos de idêntico teor em quase todos os concelhos do país. Importa, por isso, reflectir sobre os problemas da prática da recriação histórica em Portugal e o modo como está “capturada” maioritariamente por certos interesses potencialmente prejudiciais.

1.

Em primeiro lugar, passemos em revista o problema mais premente: pura e simplesmente, estes eventos são, na sua esmagadora maioria, destinados a fazer negócio, não para recriar o período supostamente alegado. Comecemos pelas bancas: Quantos daqueles produtos estariam num mercado medieval? E, mesmo que estivessem disponíveis essas mercancias ou similares, seriam representativas? Basta referir produtos como “ouro inca”, completamente anacrónicos, ou outros produzidos com materiais modernos, a que se junta a publicidade de grandes empresas e umas barraquinhas à porta de alguns destes eventos. Mesmo, às vezes, a própria recriação pode ser uma forma de anunciar produtos da terra de uma forma desonesta. Veja-se um exemplo anedótico, mas bem real: a Viagem Medieval, em Santa Maria da Feira, chegou a usar um espectáculo sobre os conflitos entre D. Dinis e seu irmão Afonso, em 1287, para divulgar a fogaça de uma maneira completamente exagerada, ainda para mais quando nos lembramos que é uma criação supostamente da segunda metade do século XVI… Ou seja, mesmo as organizações embarcam na onda da comercialização. Isto é particularmente visível também no modo como tentam cobrar o máximo que podem aos visitantes, desde as entradas com pulseiras até à visualização de certos espaços e espectáculos  (mesmo que geridos por voluntários…); e ainda para mais quando nem sequer se têm em atenção as realidades dos orçamentos familiares. Bem se pode alegar que os actores precisam de ser pagos e etc., mas o facto é que várias feiras fazem enormes lucros e muita da mão-de-obra é, para dizer o mínimo, barata, pelo que isso não é desculpa suficiente. Sem pretendermos parecer comunistas de serviço, questionamos a necessidade de preços tão altos ou a ausência de pacotes familiares mais comportáveis para gentes mais pobres, por exemplo, e achamos que este caminho tem de ser repensado. Afinal, o que distingue as feiras medievais das festas populares? O facto de apresentarem uma aparência “medievalizada”? Se for para isso, não consigo ver grande utilidade ou futuro a longo prazo, quando a moda do “medieval” passar fora do prazo…

2.

Depois, à medida que estes eventos foram ganhando popularidade, o poder político envolveu-se cada vez mais, criando ou dando suporte a várias feiras. É precisamente o suporte político que explica, em conjunto com a moda de tudo que tenha que ver com a Idade Média, o crescimento bacteriano da recriação histórica medievalista no país, a ponto de se tornar comum dizer que há hoje mais feiras (anuais) do que havia na própria Idade Média… Contudo, como os economistas dizem, não há almoços grátis: os autarcas, com algumas excepções dignas de registo, não querem saber da História para coisa nenhuma. Usam a recriação como instrumento turístico de desenvolvimento do território, o que não é necessariamente ilegítimo, e para moldar identidades locais e nacionalistas, que podem não ser completamente estanques no modo como interagem entre si. O bairrismo é muito visível em todos os eventos, embora seja mais tóxico em alguns como a Feira Afonsina em Guimarães, onde Afonso Henriques é usado de forma errónea para promover identidades locais, nomeadamente a velha máxima (altamente problemática) do “Aqui Nasceu Portugal”, de uma forma que se intersecta com algum nacionalismo. Exemplos paradigmáticos do que afirmo quanto ao bairrismo são o tratamento de aspectos como o nascimento de Afonso Henriques ou o baptizado (aconteceu uma recriação, em 2017, na Igreja de São Miguel do Castelo que, para quem não sabe, é da segunda metade do século XIII…). A questão nacionalista, apesar de um pouco mais encoberta, é facilmente observável quando se analisa o discurso à volta da identidade portuguesa nestes eventos, com uma glorificação de uma certa grandeza portuguesa, ou com o modo como o “outro”, quer se trate dos castelhanos ou dos muçulmanos, costuma ser tratado de forma hostil (com vários dos eventos a suscitarem a audiência directa ou indirectamente contra eles), embora no segundo caso alguns eventos possam dar alguma ênfase à questão da coexistência entre comunidades. Mesmo assim, no caso islâmico, comete-se o mesmo erro na esmagadora maioria das recriações: imaginar os árabes do al-Andalus como nómadas, vivendo em tendas, e outros clichés orientalistas. Conhecendo um pouco quem anda por estas feiras a fazer recriação, e sem qualquer intenção de me referir a muito boa gente que conheço, fica também a impressão de que muitos têm certos ideais de extrema-Direita ou são a ela vulneráveis. Embora um estudo sociológico e antropológico mais apurado seja necessário, julgo que estes eventos são frequentemente ambientes ideais para a proliferação de ideologias extremistas em Portugal.

3.

Por fim, há um ponto que não posso deixar de frisar. Para além de erros factuais, especialmente quando as organizações e recriadores não têm profissionalismo e experiência ou estão literalmente a ignorar os factos, temos ainda outro perene problema: a recriação histórica em Portugal não sabe reconstruir espaços e quotidianos em devidas condições, quando recriá-los poderia ser a componente mais importante de educação do público ou até uma fonte importante de arqueologia experimental. As vivências quotidianas (altamente dependentes do contexto do dia-a-dia e regional) são constantemente postas em segundo plano preteridas por grandes acontecimentos e personagens ou destacadas de forma descontextualizada, utilizando certas personagens como prostitutas, “bruxas” (o que quer que isso seja) ou outros quejandos de forma anacrónica. Julgo que isto possa estar relacionado com o modo como as companhias de teatro contratadas ou voluntárias funcionam, com uma pesquisa superficial e dando destaque em tudo o que possa ser cómico (atenção que este último aspecto pode não ser sempre negativo). Também poderia falar do vestuário historicamente incorrecto ou confeccionado com materiais inapropriados, embora esta falha também possa vir parcialmente de um certo atraso da historiografia portuguesa quanto ao vestuário medieval, da má representação de espaços como castelos como sendo habitações nobres quando a sua principal função era militar (um erro muito comum nas feiras medievais), das representações preconceituosas e descontextualizadas da mentalidade medieval (especialmente da religiosidade!), da música frequentemente anacrónica ou do modo como muitos assuntos são praticamente ignorados, indo das comunidades judaicas às questões ligadas com a exploração da terra e o senhorialismo: um bom exemplo seria a recriação do cobro de exacções senhoriais. Mesmo na área da guerra (aqui também inserida porque era frequentemente parte do quotidiano durante boa parte da Idade Média), que costuma estar fortemente representada, há erros sistemáticos na proporção em que certas armas ou armaduras são usadas: espadas por todo o lado, todos os guerreiros têm cotas de malha, etc. Isto para não referir erros tão básicos como introduzir chapas num contexto de século X, como já cheguei a ver. Concluindo, o que mais falta por aí é uma leitura aprofundada de obras como a “Sociedade Medieval Portuguesa”, de Oliveira Marques, e muitas outras mais recentes.

Um longo caminho para trilhar na recriação histórica em Portugal

Com isto, não quero propriamente fazer um ataque gratuito às feiras medievais nem demolir grupos de recriação histórica, mas sim tentar alertar para esta situação, especialmente ao público em geral, pois só este tem grande poder de mudança quando o poder político falha redondamente. Se este conteúdo deste texto também chegar à consciência de alguns elementos deste meio, tanto melhor. A recriação histórica em Portugal tem um longo caminho para trilhar, incluindo com muitas das boas práticas dos países do Norte e Centro da Europa (não que sejam perfeitos), se quiser oferecer mesmo a capacidade de poder ajudar a educar o público de forma informal enquanto estimula o seu interesse pela Idade Média, manipulando e (re)construindo populares imagens do passado.

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Obs: texto previamente publicado no blogue Repensando a Idade Média, tendo sofrido ligeiras adequações na presente edição.

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Categorias: Comunidade, Crónica, História

Acerca do Autor

José Luís Pinto Fernandes

José Luís Pinto Fernandes (1997-) é actualmente estudante do 4º ano de Medicina na Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade da Beira Interior. Como hobby, estuda a Antiguidade Tardia assim como a Idade Média e é parte da equipa responsável pela gestão da página Repensando a Idade Média, que se destina a divulgar o estado da arte do medievismo a um público lusófono, com destaque dado ao Portugal medieval em particular.

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