Crimes Ambientais | A Mancha Humana

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E se um dia acordássemos de pernas para o ar (?).

Pergunto-me, as mais das vezes, se, na nossa realidade atual, haverá espaço para a racionalidade, para a valorização do que é mais basilar. O respaldo de uma sociedade ébria de futebolagem e reality shows, coadjuvada pela decadência hodierna dos valores do jornalismo, possibilitam-nos a conclusão óbvia a este tipo de interrogações.

Amigos, Romanos, Compatriotas, emprestai-me os Vossos ouvidos[1].

Podia muito bem caracterizar a forma como a sociedade portuguesa olha para a proteção ambiental como um espantoso solilóquio shakespeariano. E fá-lo-ia sem grande esforço: a velha máxima cómica “olha o que digo, não o que faço” ganha cada vez maior nitidez.

É sabido que proliferam os casos de atos de impacto relevante do ponto de vista ecológico para país, mormente no que respeita a dimensão de saúde pública. Ora, falamos, neste exato sentido, de atuações que configuram verdadeiros atos ilícitos, passíveis de integrarem práticas contraordenacionais, ou, no limite, criminais.

Por uma margem, em traços ligeiros, a legislação lusa prevê que, em determinadas tipologias de situações, uma dada pessoa ou empresa incorra num ato de tal molde censurável que a torne responsável pelo pagamento de uma coima, cujos intervalos de valores variam entre 200€ a 36.000€, para contraordenações leves, 2.000€ a 216.000€, para contraordenações graves e 10.000€ a 5.000,000€ para contraordenações muito graves. Tal panorama está previsto e devidamente regulado na Lei Quadro das Contraordenações Ambientes – Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto –, (concretamente, no seu Art. 22.º e ss.), diploma legal cuja última revisão teve lugar há 2 anos – através do Decreto-Lei 42-A/2016, de 12 de agosto.

Por outra banda, o código penal português faz sentir a sua espécie de ubiquidade na normatização deste fenómeno, prevendo e punindo quer aquelas condutas que consubstanciem práticas lesivas para a natureza, fazendo perigar espécies e afetando gravemente recursos (Danos contra a natureza – Art. 278.º), quer as práticas suscetíveis de provocar danos substanciais na componente ambiental, tais como degradação da qualidade da água ou solo (Poluição – Art. 279.º). A moldura penal para este tipo de ilícitos penais pode ascender até 5 anos de prisão.

A caravana passa e as perguntas permanecem: porque é que a impunidade se tornou a regra e não a exceção? Veremos adiante que, neste quadro, o papel da Justiça e respetiva efetividade se encontram a jusante e não a montante.

Como é bom de ver, não falamos de circunstâncias isoladas, no tempo ou no espaço. Lembremo-nos do que ocorreu há menos de um mês, no Rio Este, na zona de Braga. O leito do rio ficou de tal forma afetado com uma descarga de poluentes (ainda por apurar oficialmente!) que se tornou… branco. Situação alegadamente despoletada por uma obstrução voluntária, erigida através de sacos de areia estrategicamente posicionados junto do coletor de saneamento de águas residuais da freguesia de São Mamede de Este. Se apelarmos a uma maior extensão de memória, recordaremos o infame caso no rio Tejo, na zona de Abrantes, em que as fibras celulósicas se encontravam concentradas a um nível cinco vezes superior ao normal (qual o espanto?). A artéria nevrálgica do que, aqui, se pretende trazer à liça é a suspeita do costume: a passividade política de quem pode, mas não quer. De quem justifica o injustificável. De quem diz coisas repletas de coisa nenhuma.

O Ministro do Ambiente, Dr. João Matos Fernandes, foi lesto, quando questionado sobre o caminho percorrido e a percorrer para reprimir incidentes deste calibre, afirmando lapidarmente que o problema era… das licenças. Nas palavras do governante, em fevereiro e março do presente ano, o maior óbice será revisitar este problema das licenças ambientais sem que as empresas intervenientes “percam a sua capacidade de criar riqueza” (!).

Vejo aqui duas pedras na engrenagem.

De um prisma, verifica-se a habitual opacidade argumentativa de quem é responsável máximo por determinado pelouro e mais não faz do que relativizar a questão (nunca nada vai mal no reino da Dinamarca, claro está[2]), ou, pelo menos, atribuir a reincidência deste tipo de atuações a verdadeiras… minudências. Sejamos cristalinos, mesmo nas indagações: quem é que, no fim de contas, autoriza a atribuição das licenças? Quem é que avalia os critérios a preencher? Quem é que delega funções inspetivas do cumprimento dos requisitos? etc.. De outro, contempla-se a convicção de que este naipe de circunstâncias nocivas para o ambiente é ainda visto, quer pelo poder político, quer pela Justiça portuguesa, como absolutamente secundário. Convicção, essa, alicerçada na observação de um excesso de parcimónia no que concerne a aplicação e execução de sanções, contraordenacionais e/ou penais.

Diria que parece existir uma densa neblina sobre esta temática que dificilmente se dissipará nos próximos tempos. Mas a nossa missão, enquanto sociedade civil, é exigir mudanças, mais e melhores. O posicionamento político de quem nos governa e a Justiça que enforma o tecido democrático de Portugal devem, neste contexto, ser, clara e inequivocamente, parte da solução, não do problema.

Não urge apenas que a capacidade ministerial de abordar os licenciamentos (bem como o respetivo acompanhamento) de atividades potencialmente perigosas para o ambiente seja firme, como também que o sistema judicial português comece, definitiva e substancialmente, a levantar o véu sobre uma realidade que, não sendo paralela e produto de ficção, é tratada como algo marginal.

Como diria o “nosso” Guerra Junqueiro, a verdade não conhece perífrases e a Justiça não admite reticências.

A inexorabilidade da sua aplicação não é, nem nunca poderá ser, um luxo. É, e continuará a ser, uma necessidade.

 

[1] Referência a uma passagem da famosa peça de William Shakespeare The Tragedie of Julius Caesar.

[2] Alusão irónica à peça shakespeariana Hamlet.

 

 

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Categorias: Crónica

Acerca do Autor

Pedro Pinto de Sousa

Advogado. Mestre em Direito das Empresas e dos Negócios pela Escola de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Porto). Investigador de Tech Law.

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