Jorge Molder. Jeu de 54 cartes, Jogo Figural

Jorge Molder. Jeu de 54 cartes, Jogo Figural

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Todo o Pensamento produz um Lance de Dados

– Mallarmé

 

Desde o final dos anos setenta que Jorge Molder tem explorado as possíveis variações e intersecções entre o auto-retrato e a auto-representação, como um domínio peculiar e profícuo na indagação das múltiplas e imprevisíveis relações entre a perceptibilidade das aparências e os meandros da experiência da imaginação. Em muitas das séries fotográficas que entretanto realizou somos continuamente
confrontados com a presença do artista, que dá a ver o rosto e as suas expressões, os gestos e os movimentos do corpo. Não obstante, o que vemos é a presença modelar de uma figura indistinta e genérica, com um conjunto mínimo de características, uma figura mediadora de várias figuras, que se desmultiplica por vários semblantes, papéis e substitutos, o protagonista de um jogo destinado a reconfigurar o nosso entendimento sobre as diferenças e as sobreposições entre as ideias de autenticidade e dissimulação, de realidade e ficção, de corpo físico e corpo-imagem.

Trata-se de uma arte da pantomima que mobiliza um corpus complexo e vasto de origens e linhagens, em que é notória a proliferação de inúmeras referências com origem na literatura e na filosofia, na arte e na ciência, no cinema e na cultura popular, enquanto territórios de imagens, de narrativas e de mitologias. Porém, estas referências não devem ser entendidas de ânimo leve, nem muito menos como manifestações de erudição. As referências são indicações susceptíveis de mobilizar uma imaginação imensamente prolífica, disponível para gerar ligações improváveis e até certo ponto inexplicáveis, que engendram derivações conceptuais e combinam distintos horizontes experienciais e culturais.

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jorge molder - jeu de 54 cartes - fotografia - arte - exposição - santo tirso - corpo - representação

Nesta exposição e respetivo catálogo foram e são apresentados a série de Jorge Molder, Jeu de 54 cartes, realizada ao longo de 2017. Tendo por base a estrutura típica do popular baralho de cartas francês, constituído por quatro naipes de treze cartas cada, Molder realiza uma série de fotografias com seis partes: cinquenta e duas imagens repartidas por quatro naipes (Caras, Mãos, Bocados, Espectros), mais duas de dois Jokers e a de um Gabarito. No total são portanto 55 imagens, e não 54 – primeiro aviso.

Comecemos pelas Caras. Uma sequência de retratos, na sua maioria frontais. O rosto mostra-se, faz uma primeira careta, para logo a seguir nos dar a sua imagem invertida, a face durante uma queda, o efeito da gravidade, ou simplesmente uma mudança de plano. Depois, o ponto de vista e a distância mantêm-se constantes, e a figura continua, exprime, dissimula reacções a algo ou alguém. A pessoa e a
interposta pessoa. O duplo e a máscara manifestam-se, ora revelando-se ora ocultando-se. Aparecem e parecem, o doido, o céptico, o amargo, o traidor… caras que atiçam o nosso persistente impulso de querer decifrar indícios psíquicos e morais no rosto do outro.

No naipe das Mãos vemos um conjunto de imagens nas quais a expressividade da mão, a pose, denuncia uma intenção consciente, gestos enfáticos que manobram a espontaneidade e as suas possíveis conotações. As mão fazem e dizem. Oferecem-se a uma observação perscrutadora: pele, poros, linhas, músculos, carne, ossos, rugas, unhas. Conjugando expressão teatral, quiromancia e observação anatómica, estas imagens encaram as mãos como a outra parte do corpo, depois do rosto, com uma acentuada capacidade expressiva, no que toca a suscitar e iludir sentidos, comportamentos e afecções.

Nos Bocados acentuam-se os movimentos da figura. O rosto e as mãos interagem, colaboram. As expressões são mais dramáticas. Pressente-se dor, temor, desespero, agonia. Por vezes o corpo dirige-se para baixo, cai, deita-se para encenar a sua máscara funerária. A relação com a câmara é também mais explícita. Os pontos de vista variam, de mais perto ou de mais longe. Por vezes, o olhar dirige-se vigorosamente para a câmara, para vincar um corpo a corpo, uma interpelação, como a imagem de uma boca que se aproxima, perigosa e intempestivamente, para nos defrontar com a visão de um abismo.

No último dos naipes, Espectros, o artista realiza uma sequência de gestos. Imaginamos uma dança introspectiva, física e mental. Os planos mudam, em segmentos de três imagens: começam mais altos e distantes, até ao ponto em que as figuras se assemelham a marionetes convulsas; depois, o olhar acerca-se da figura, intensificando a tensão, até o corpo se contrair, aparentemente dominado por sensações dolorosas.

Nestas imagens o corpo surge dramaticamente cercado pelo negro, um fundo misterioso e carregado de invisibilidade. Tal como noutras séries de Jorge Molder, o negro envolve, circunda a figura. É o elemento primordial de um campo potencial, no qual a luz tratará de providenciar o aparecer, o ver e o desaparecer. Enquanto dispositivo pictórico e perceptivo, o negro reforça a passagem do plano tridimensional para a superfície bidimensional da imagem e celebra a intermediação entre o visível e
o não visível, entre o actual e o virtual, aponta para os caminhos intrincados da percepção, da memória e da imaginação. É um ambiente que tem o condão de reforçar uma ambiguidade perturbadora, como se estas visões e estas figuras fossem emanações de um estado hipnagógico, o estado alterado de consciência, intermediário entre a vigília e o sono, no qual o indivíduo está mais disponível à irrupção de outras frequências da visão.

Por fim, a imagem do Gabarito e as duas imagens dos Jokers, as únicas em que a figura está ausente. São imagens de objectos; respectivamente, um pequeno cubo (objecto medidor), a roupa comum a todas as personagens e o título da série. Objectos vagos, indícios de um puzzle irresolúvel, que dirigem o espectador para um estado de indiscernimento, sem visar o seu alheamento mas tão-só enredá-lo numa
trama de imensas potencialidades subjectivas e projectivas. Vemos e imaginamos coisas, que são próximas de outras coisas, que remetem e derivam para coisas outras, como sintomas de um mundo de passagens, entre o real e o inventado, que activa no sujeito aquilo que ele tem de mais secreto e insondável – sonhos, memórias, visões, ecos, devaneios, evocações, delírios, alucinações.

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A noção de jogo é há muito um elemento recorrente no processo criativo de Jorge Molder. O jogo surge como uma actividade que nos incita a uma experiência heurística das coisas, que configura a possibilidade de abertura para tudo o que se desvia de convenções, categorias e estruturas de entendimento pré-estabelecidas. Aplicada ao campo da arte é uma noção que certifica a arte como uma prática que formula as suas próprias regras, a possibilidade de preterir a intenção deliberada, a sistematização, o discurso prévio, a favor da experiência do possível, da espontaneidade e da disponibilidade interpretativa.

Como se sabe, o jogo é uma noção fundamental da literatura e da arte modernas, pelo menos desde Stéphane Mallarmé e de Marcel Duchamp1. O jogo prefigurou um modo privilegiado para repensar as articulações entre a vida, a arte e a imaginação. Somente tratando a vida e a arte como um jogo, acreditava Duchamp, seria possível denegar ou contornar o modo como certas “verdades” e “leis” construídas pelo pensamento racional tendem a constringir a vida em sociedade; como também seria possível impugnar o suposto valor universal e absoluto do pensamento científico, de modo a reencontrar uma liberdade e uma independência sem limites nem constrangimentos2. É neste contexto que se desenvolve a ideia de uma estética do acaso, uma predisposição conceptual em que as fronteiras entre ciência e arte, obra de arte e experiência, arte e não arte, são completamente dissolvidas e reformuladas.

Não é a primeira vez que Jorge Molder evoca a figura do jogador ou fotografa cartas de jogar. O acto inicial do jogo das cartas é o baralhar, o misturar e o desarrumar, para deixar que as forças do acaso abram o destino a um imenso (e em parte incontrolável) horizonte de possibilidades. O jogo e, correlativamente, o acaso e a intuição, são portanto condições decisivas nesta pesquisa em que Jorge Molder correlaciona o trabalho de desmultiplicação das (suas) figuras com os dilemas essenciais da nossa relação com a imagem. Ora, se as imagens parecem indeferir a expectativa de um Eu único e original, primeiro e autêntico, porque cada indivíduo é também constituído pelas suas mutações e pelos seus substitutos, ao mesmo tempo alertam-nos para a natureza paradoxal da relação entre a fotografia e cada figura que representa. O que há de verdade e o que há de factício, naquele corpo, naquele gesto,
naquela expressão? Como distinguir as nuances de separação e de sobreposição entre imagem e representação, entre realidade e a fantasia, entre o Eu e o(s) Outro(s)?

Perante a maioria das imagens que integram cada um dos quatro naipes, ficamos com a sensação de já ter visto algo semelhante em muitas outras imagens de séries anteriores de Jorge Molder. É de admitir que algumas destas imagens poderiam integrar outras séries e vice-versa. Ora, a noção de série tem um duplo sentido no trabalho de Jorge Molder. É um modo de segmentar trabalhos desenvolvidos num 1 Destes dois autores é de destacar duas obras seminais relacionadas com a ideia de jogo e acaso: o livro Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, publicado por Mallarmé em 1897, e de onde foi retirada a citação em epígrafe; e o trabalho 3 stoppages étalon, realizado por Duchamp em 1913-1914. 2 Ver Herbert Molderings, Duchamp and the Aesthetics of Chance. Art as Experiment, New York, Columbia University Press, 2010. 5 certo período temporal que foram desencadeados por um tema, um imaginário, uma ideia, mais concreta ou mais vaga. Mas refere-se também ao modo como o autor prossegue uma observação exaustiva e obsessiva das suas figuras, dos seus gestos e das suas expressões, que conduz inevitavelmente ao serialismo e à iteração, dentro de cada série e entre as distintas séries. O que muda então? O que muda são as condições (não explicitadas) e as oportunidades circunstanciais que emergem com cada novo jogo. Renova-se a ocasião para instigar relações e conexões entre coisas soltas, avulsas, dispersas, descontinuadas, que são movimentadas pelo acaso, que são movimentadas por combinações, ressonâncias, coincidências. Neste âmbito, devemos também considerar o valor de sugestão – simbólica, visual, literária – que desponta dos títulos que o artista foi atribuindo às diferentes séries: Ocultações, Circunstâncias Atenuantes, O Pequeno Mundo, Comportamento Animal, Tangram, Anatomia e Boxe, Pinocchio, TV, só para citar alguns deles. Por outro lado, o corpo não é exactamente o mesmo, e por isso os gestos e as suas conotações são necessariamente renovados ou revistos. Daí que o espectador familiarizado com a obra de Jorge Molder nunca veja as suas figuras apenas como auto-representações. É impossível ignorar o seu valor enquanto retratos, o que comprova como o protagonista mudou ao longo do tempo. Ele mudou. E mudaram também as condições perceptivas, a urdidura entre imagem, imaginação e imaginário.

Por conseguinte, na obra de Jorge Molder é relativamente secundário perguntarmo-nos se estamos perante auto-retratos ou auto-representações, ou se estas imagens aspiram a ser presenças ou representações. Limitemo-nos a reconhecer que, neste jogo figural, neste jogo com as figuras, essas categorias são indissociáveis.

Dizem que o homem se distingue dos outros seres vivos pelas imagens que fabrica. Por outro lado, as imagens mostram quão mutável e volátil é o homem. Quem é afinal esta figura? Quem representa? Vemos aparecer um homem ou, pelo contrário, o desfazer da sua própria condição individual? De um lado, teremos a aferição fisionómica, a descrição dos traços do seu rosto. Do outro, a alteridade, a
transformação, o movimento figural. Duas maneiras de ser, dois extremos que colaboram, nos dois sentidos.

No rosto tudo se precipita, de todas as maneiras e em todos os sentidos. O homem gesticula, faz caretas, comprime-se e alarga-se, mitiga e brutaliza. Tudo maneiras de demonstrar a si mesmo, e aos outros, até que ponto é infinito o número de caras, faces, aspectos, aparências, máscaras, perfis, que é capaz de protagonizar.Outra pergunta: quantos rostos tem um rosto? Desfigurar-se, refigurar-se, transfigurar-se, em cada rosto reside a possibilidade de poder assumir inúmeras aparências e papéis, de entre os que conhece até aos que nem imagina poder vir a encarnar. A verdade do rosto está pois na sua polimorfia, na sua transformação, na metamorfose, na multiplicidade. Somos mais do que um. A aparente unidade de cada indivíduo dissolve-se numa cacofonia de vozes contraditórias, nenhuma das quais correspondendo a um ser. Os seres humanos não são indivíduos, são “divíduos”.

As fotografias de Jeu de 54 cartes partem de um corpo real, o corpo que esteve diante da lente da câmara no momento do acto fotográfico. Porém, no trabalho de Jorge Molder tudo se conjuga para a transposição desse corpo para um lugar incerto mas criativo, um lugar propenso a reconfigurações imaginárias. Os semblantes e as máscaras, as dissimulações e as poses arquetípicas, são modos de sinalizar esse jogo – relacional e especular – entre o Eu e o Outro, entre o Eu e os Outros, entre o Eu que é Outro diante de si e diante dos outros. É uma peculiar arte do retrato, propícia a transições e transacções que desafiam e são desafiadas para que os outros o vejam e se vejam a si mesmos nele.

Em cada face, em cada gesto e cada expressão, há uma espécie de eloquência silenciosa que, mesmo na sua forma suspensa, age, provoca movimentos. Como disse Diderot, «num indivíduo cada instante tem a sua fisionomia, a sua expressão»3. As imagens de Jorge Molder mostram que não comunicamos apenas com a voz e com a linguagem; falamos também com as mãos, com a testa e as sobrancelhas, com os olhos, com o corpo. Efectivamente, expressar-se, calar-se, descobrir-se, mascarar-se, são tudo virtudes do sujeito humano. Já agora pense-se também na figura do jogador: na sua ponderada economia expressiva, o homem do jogo antecipa cada movimento ou semblante com a intenção clara de projectar uma imagem impenetrável ou ambígua de si.

Em Jeu de 54 cartes, o artista explora e personifica dois pólos da expressividade humana: de um lado, o de uma expressividade espontânea e brutal, impulsiva e sensível, pré-linguística, incontrolada, que dá a ideia de um indivíduo fora de si mesmo; do outro lado, vemos um rosto e uma figura consciente dos seus actos, entregue a uma gestualidade voluntária referenciada na cultura, na retórica e nos sistemas de codificação. Por outras palavras, são dois pólos que apontam para Denis Diderot, Essais sur la peinture, Paris, Hermann, 1984 (1795), p. 371. 3, dois sentidos distintos, dois domínios figurais: o das pulsões emocionais, da manifestação inconsciente, do arrebatamento; e, em sentido contrário, o da temperança, da contenção e da consciência de si.

Em cada face, em cada gesto e cada expressão, há uma espécie de eloquência silenciosa que, mesmo na sua forma suspensa, age, provoca movimentos. Como disse Diderot, «num indivíduo cada instante tem a sua fisionomia, a sua expressão»3. As imagens de Jorge Molder mostram que não comunicamos apenas com a voz e com a linguagem; falamos também com as mãos, com a testa e as sobrancelhas, com os olhos, com o corpo. Efectivamente, expressar-se, calar-se, descobrir-se, mascarar-se, são tudo virtudes do sujeito humano. Já agora pense-se também na figura do jogador: na sua ponderada economia expressiva, o homem do jogo antecipa cada movimento ou semblante com a intenção clara de projectar uma imagem impenetrável ou ambígua de si.

Ao longo destas fotografias, Jorge Molder assume poses, gestos e movimentos sem submissão a nenhum tipo aparente de ordenação ou de encadeamento narrativo. É uma série de imagens que tem a virtude de escancarar as fragilidades e as insuficiências da narrativa nas artes visuais, designadamente na fotografia, e que ao mesmo tempo exprime a nossa persistente e insaciável procura de narrativas.

Neste conjunto de imagens descontínuas, nesta sucessão de figuras emanadas de um mesmo protagonista, genérico e concreto, indistinto mas real, insinua-se uma narratividade impossível de cumprir. Estas potencialidades e as relações que se entretecem entre fixidez e movimento, entre o visível e o não visível, entre o actual e o virtual, empurram inevitavelmente o espectador para os domínios da imagem mental. Com o grau de imprecisão que o tema exige, a imagem mental poder-se-á então caracterizar por um ímpeto de fixação que é rapidamente conduzido para uma mobilidade descontínua e desvairada, fragmentária e imprevisível, como uma flutuação quase irreal entre estados de suspensão e de movimento, sem se submeter aos parâmetros do movimento natural. Ou seja, é através de imagens fixas e fugidias, que induzem movimentos não lineares ou mesmo fracturados, que a realidade mental capta e memoriza um movimento, real ou inventado. É neste limbo que as fotografias de Jorge Molder recriam ou recuperam uma certa cadência da imaginação, em que, perante as imagens – por mais vivas que estas pareçam – elas apresentam-se-nos com os seus saltos e as suas falhas, como num filme fragmentado.

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Estas imagens têm origem num acontecimento. Tudo começa sem um plano prévio. O artista posiciona-se ante a câmara. Inicia-se a experiência de confabulação entre o artista e a câmara. Jorge Molder põe em evidência a factura, o fazer. O artista faz, age, actua, mostra, partilha uma experiência solitária. Enquanto actor num acontecimento montado, o artista dá-se a ver como um ser vazio, um personagem potencial, só verdadeiro em acto e graças à sua disponibilidade. Ocasião para procurar um real puro, tendencialmente indiscernível de um devir, entre homem e câmara, corpo e espelho. Ambos se equivalem neste teatro de imagens, de revelações e 8 ocultações, porque no teatro, como na literatura, como na arte, é preciso aceitar a indivisibilidade entre a verdade e a ficção.

Como se organiza este acontecimento? É o fotógrafo que dirige o modelo ou o contrário? Podemos supor um diálogo ou uma luta severa por dominar a cena e a pantomima, em que todas as figuras intercambiam ou confundem os seus papéis. O corpo é um volume trabalhado pelas luzes e pelas sombras, um jogo entre o claro e o escuro que confere diferentes temperaturas a cada entrada em cena do personagem, e cada uma das máscaras que, intuitiva ou conscientemente, acaba por desempenhar.

As fotografias constituem a prova de que o acontecimento foi real (teve lugar no mundo real), ainda que as imagens não sejam propriamente realistas. Mas sujeitase à convicção de Roland Barthes de que «de um ponto de vista fenomenológico, na Fotografia, o poder de autentificação sobrepõe-se ao poder de representação.»4

As fotografias duplicam e, como tal, as figuras são intrínsecas a um processo de representação cuja natureza é reprodutiva, produz réplicas, símiles. Por conseguinte, estas figuras são também puros artifícios do médium. No enigma da imagem, presença e ausência encontram-se enredadas de modo indissolúvel. São imagens que captam as figuras com aquela verdade que só a técnica permite. É um olhar preparado pela fotografia. Neste sentido, o meio desencadeia um outro tipo de percepção, o ensejo de uma mudança, de uma visão alternativa. Ao ser transformado numa imagem, o corpo sofre uma transmutação ontológica; e ao mesmo tempo cedese à imagem o poder de se apresentar em nome e no lugar daquele corpo.

Estas questões em torno da imagem não podem naturalmente ser dissociadas da percepção e da consciência do corpo. Ora, as imagens fotográficas são produtos de um meio, com as suas características ontológicas e conotações culturais. Mas sabemos também que a experiência de cada imagem fotográfica é igualmente um produto de nós próprios, do nosso corpo como um meio vivo de imagens. Efectivamente, o lugar por excelência das imagens é o corpo. É um lugar no mundo e um lugar onde se produzem e se (re)conhecem imagens. As imagens são manifestações corpóreas, que evocam e conjuram visões (imaginações, lembranças, percepções, sonhos) continuamente diferentes, antigas e novas, e necessariamente contingentes e circunstanciais. É a partir dessa natureza corpórea das imagens que Jorge Molder nos convoca também para observar o arco do fotográfico, o que se forma entre a sua 4 Roland Barthes, A Câmara clara, Lisboa, Edições 70, 1989 (1980), p. 132 9 epistemologia paradoxal e a sua plasticidade, no qual visível e visual, semelhança e dissemelhança, mente e corpo, fixidez e movimento, rememoração e imaginação, são noções conexas e indissociáveis, como partes dos batimentos vitais que nos ligam às imagens.

Portanto, este jogo que Jorge Molder nos propõe não pode dispensar uma crucial reflexão sobre a natureza paradoxal da imagem, nomeadamente da imagem fotográfica. Mais do que um mero instrumento de produção de imagens deve-se aqui entender o fotográfico como um regime de visualidade vinculado a um tipo de imagem extraordinariamente singular; uma imagem com um elevado potencial de figuração da realidade, que reduz a percepção do tempo e do espaço a uma unidade fixa, constituindo um imaginário de instantes separados; um modo de representação que oscila entre uma assinalável competência descritiva e uma precariedade e um valor de incompletude (por ser justamente apenas uma imagem de cada vez) que confere à imagem uma incontornável qualidade disruptiva em que o olhar se interpenetra com o pensamento (com as memórias, as emoções, a intersubjectividade), propiciando um complexo jogo na nossa persistente procura em aferir a experiência do real. Assim, poderíamos dizer que há uma perceptibilidade que é imanente à fotografia, ou seja, que há uma forma de experienciar e pensar que sugere uma consistência fotográfica.

Em Jeu de 54 cartes, toda esta reiterada e exaustiva variação em torno de um corpo e de um rosto, todo este exercício de simulações e dissimulações não nos conduzirá certamente a nenhum tipo de clarividência antropológica sobre cada uma das figuras, mas talvez nos sugira como podemos experienciar as suas imagens. É pois necessário ir para além do visível, da bitola da semelhança, da expectativa de uma verdade da imagem – simplesmente porque a imagem nunca é verdadeira – de modo a indagar o seu carácter intrinsecamente dinâmico, o seu carácter de mobilidade e manifestação. As imagens mostram-nos e escondem-nos qualquer coisa, num mesmo tempo, num mesmo espaço. É um jogo sugestivo e inebriante entre dobrar e desdobrar: a imagem ora carrega uma certa verdade ora carrega uma certa ficção. No trabalho de Jorge Molder percebemos que não basta tentar perceber as imagens. É também necessário compreender em que sentido elas nos dizem respeito, como nos olham e nos comprometem. É esse o jogo inevitável das imagens.

Exposição e livro ‘Jeu de 54 Cartes’

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Sérgio Mah e Jorge Molder

Ligações:

Pouco depois da inauguração da exposição “Jeu de 54 Cartes“, ocorrida a 27 de outubro de 2017, a INCM iniciou a publicação de uma série – intitulada Ph. – dedicada a fotógrafos portugueses contemporâneos. Jorge Molder, inevitalvelmente, foi escolhido para a publicação nº 01.

Os artistas vivem de perguntas, não vivem de respostas” é o sugestivo título atribuído pela Prelo, da INCM, à entrevista retrospetiva que realizaria com o autor a este propósito.

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Notas de rodapé:

1 Destes dois autores é de destacar duas obras seminais relacionadas com a ideia de jogo e
acaso: o livro Un coup de dés jamais n’abolira le hasard, publicado por Mallarmé em 1897, e
de onde foi retirada a citação em epígrafe; e o trabalho 3 stoppages étalon, realizado por
Duchamp em 1913-1914.

2 Ver Herbert Molderings, Duchamp and the Aesthetics of Chance. Art as Experiment, New
York, Columbia University Press, 2010.

3 Denis Diderot, Essais sur la peinture, Paris, Hermann, 1984 (1795), p. 371.

4 Roland Barthes, A Câmara clara, Lisboa, Edições 70, 1989 (1980), p. 132.


Obs: este ensaio é a nota de abertura do Catálogo “Jeu de 54 Cartes”, de Jorge Molder, que serviu de base à apresentação do mesmo efetuada aquando do seu lançamento em 23 de fevereiro de 2018. Possui apenas uma adequação em relação ao original, atendendo à publicação do Catálogo e à data de publicação deste artigo.


Imagens: MSTS


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Categorias: Arte, Cultura, Ensaio, Fotografia

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