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Spielberg. Em busca do tempo perdido

 

 

Talvez isto seja um exemplo de como a experiência de ver um filme ultrapassa o perímetro estrito da crítica sobre o filme e acaba por se infiltrar nos pequenos e insuspeitos intervalos que demarcam as outras experiências da vida. Porque é mesmo de intervalos, na sua aceção convencional, que aqui falo – mais especificamente, o momento de pausa na exibição de Ready Player One no Cineclube de Joane, no passado dia 21 de junho.

Muito resumidamente: no mais recente filme de Steven Spielberg, a vida – a verdadeira vida, a dos afetos, dos desejos, a que tem dignidade – é virtual de cima a baixo, mergulhada a fundo num delírio a cores chamado Oasis. E depois de se emergir neste mundo, assim que nós próprios, como espectadores, aceitamos as regras deste jogo durante a primeira metade do filme, é com alguma perturbação física que o corte do intervalo nos devolve à nossa condição desalojadamente real. Senti isso ao observar o mais banal dos rituais do nosso tempo a acender-se, como pirilampos, na sala de cinema: sai-se do jogo virtual de Oasis – que é, como quem diz, sair da suspensão da descrença que constitui o pacto de se ver cinema – e reentra-se no diferimento desse mundo, que é tão-só o gesto de pegar no smartphone e abrir a conta do Facebook ou do Gmail, e deixar-se levar pela enchente de imagens, gifs e demais estímulos que por aí circulam. Apenas isto: o rosto focado na tela da sala curva-se em direção ao pequeno ecrã de bolso que alterou profundamente o nosso modo de estarmos em sociedade e de nela convivermos. Um real e um virtual compossíveis, o online de 2018 como o precursor digital do Oasis de 2045, o ano em que decorre a intriga.

Diogo Martins: Dar Coisas aos Nomes | Steven Spielberg, Em busca do tempo perdido

Baseado no romance de estreia de Ernest Cline, Ready Player One assenta a narrativa no conhecido dualismo real/virtual. De um lado, o dito mundo “real” que obedece às reconhecíveis figurações distópicas no cinema dos últimos anos, com paisagens humanas degradadas, sobrevivendo em subúrbios onde a vida mal se distingue daquilo que é entulho ou resíduo pós-industrial (pense-se no que resta do planeta Terra no filme Wall-E ou na neblina que tolda as cidades de Blade Runner e Blade Runner 2049). Do outro lado, o mundo virtual, vivido com a intensidade que já não se sente no suposto real empírico. Nada mais tem sentido fora da realidade virtual de Oasis, esse jogo onde cada ser humano do planeta se reinventa numa nova pele, num avatar com desejos próprios, com o carisma que a identidade civil não está em condições anímicas de fazer vingar. Há, portanto, mais verdade no mundo da ficção do que no mundo real – mais verdade, assim como mais amor (e amor-próprio, se pensarmos no protagonista) e mais paixão de viver. É mais verdadeira a máscara, o avatar, a personalidade virtual escolhida, do que o rosto fatalmente perecível deste e daquele corpo, desta e daquela identidade condenada a amanhar-se num mundo desfeito em ruínas.

Passo à frente os detalhes da intriga, centrada no esforço por salvar Oasis de ser desmantelado por uma megacorporação. O que acontece no filme de forma tão apaixonada é a avalanche nostálgica de referências, de um filme dedicado à homenagem de outros filmes, símbolos, ícones e personagens. Há, aliás, dois momentos incrivelmente singulares que visibilizam essa paixão do cinema por si próprio e pela preservação de uma certa imagem do cinema.

O primeiro desses momentos: uma sequência de rally capaz de fazer corar qualquer filme que se apelide “de ação”. Como se não bastasse a própria efervescência dos múltiplos veículos rasgando a pista a toda a velocidade, Spielberg enche-nos o olho com uma constelação demencial de múltiplas coisas a acontecer e a explodir em simultâneo, tudo genialmente conjugado num ritmo alucinadamente catastrófico, com, pelo menos, dois monstros do cinema a darem o ar da sua graça – o King Kong e o T-Rex (este, já se sabe, de reconhecido poder ameaçador graças à imagem que Spielberg ajudou a fundar num outro filme seu). Uma sequência como esta faz jus ao cinema como espaço-tempo de evasão, de puro entretenimento sem vergonha de o ser (o que não é caso para menos num realizador como Spielberg, cuja consagração se faz também contra as vozes críticas que veem na sua cinematografia mais parra blockbuster do que uvas autorais, fazendo parecer A Lista de Schindler ou The Post como acidentes de percurso).

Diogo Martins: Dar Coisas aos Nomes | Steven Spielberg, Em busca do tempo perdido

O segundo desses momentos é uma incursão pelo The Shining (1980), de Stanley Kubrick, que é aqui literalmente invadido pelos protagonistas de Oasis. O curioso desta sequência é que, ao revisitar um incontornável clássico do terror, Spielberg parece estar pouco interessado em entrelaçar possíveis pontos de contacto entre as intrigas dos dois filmes. No fundo, há uma certa gratuitidade na escolha de The Shining, como se qualquer outro filme pudesse aí ser encaixado para brincar às mise-en-scènes. Retira-se dessa escolha uma sensação de leveza que, primeiro, é totalmente estranha ao filme de Kubrick (que é um filme de terror) e que, segundo, convida mais depressa o espectador à errância e à força movente da incursão do cinema por dentro dele mesmo, isto é, o cinema a evidenciar-se enquanto arte da contemplação, a arte das imagens por excelência. O fascínio pelo movimento das imagens, o fascínio do cinema por si próprio. Aqui, The Shining, mais do que nos aterrorizar, parece querer comover-nos pelo simples facto de ter existido – e pelo facto de nos recordarmos da sua existência. E a memória da memória, diz-nos Proust ou António Damásio, não subsiste sem emoções.

Há, no entanto, alguns senãos que, sem grande agravo (porque, afinal, a promessa, ou a premissa, do filme vem desde logo explicitada no pastiche garrido do cartaz promocional), se arriscam a simplificar certas dimensões e a garantir uma maior eficácia do filme junto de públicos mais óbvios, mais estereotipadamente juvenis, tanto quanto há de juvenil em discernir o preto no branco em matéria de tramas narrativas e densidade psicológica. Refiro-me, sobretudo, a dois aspetos.

Primeiro, o vilão do filme, Nolan Sorrento, tão explicitamente vilão do início ao fim, na sua tarefa de cumprir à risca o retrato de um frio homem de negócios, insensível ao pathos daquele jogo, contrastando com o modo tão apaixonado com que o mesmo é vivido por toda a gente do mundo. Dá-se, porém, uma pequena ressalva catártica já no final, quando se esboça naquele seu sorriso uma generosa complacência, um sorriso de poucos segundos que, tivesse sido um pouco mais adensado ao longo do filme, quase salvaria a personagem de ser facilmente engatilhada num espartilho tão funcional.

Segundo, o final surpreendentemente feliz do filme: não pelo que haja nisso de previsibilidade convencional, nem porque tal viesse destoar de todos os preliminares e peripécias do argumento, mas apenas porque a moral da história, longe de agudizar o conflito inerente à vivência plena na realidade virtual, parece tentada a esquivar-se a interrogações mais veementes sobre aquilo que no filme tem muito pouco de futurologia distópica e muito mais que ver com a nossa vida de hoje, aqui e agora. Isto é, a vida pós-humana, biónica, “homeotécnica”, como diria Peter Sloterdijk, para designar a zona de indiscernibilidade entre o artificial e o humano. E que moral da história é essa? Consiste no desconto semanal que se resolve dar aos seres humanos para que, no meio do seu júbilo virtual, nunca se esqueçam de que o que realmente importa na vida são os afetos de carne e osso, a presença real dos corpos e a cumplicidade que se cria entre eles. Para quem nascera em pleno Oasis, este súbito regresso aos “bons velhos tempos” parece radicalmente estranho e, por isso, muito pouco credível, como quem atira um ás de copas para o meio de um tabuleiro de xadrez, alegando seguir com naturalidade as regras do mesmo jogo.

É ao furtar-se a essa possibilidade mais madura de interrogar a ordem das coisas que o filme parece anuir, de corpo e alma (seja lá o que “corpo e alma” signifiquem no mundo de Oasis), com a franja do público que menos estranhará o estilo de vida dos protagonistas (a começar pela capacidade de reconhecer todas, ou quase todas, as referências da cultura pop das últimas três décadas), ou a parte desse público que se compraz com o sonho de ser Peter Pan a vida toda (sonho que os avatares do Oasis fingem fazer cumprir). Porque, de facto, o próprio criador do jogo Oasis, com o seu misto de nerd e génio introvertido, poderia complexificar algo que no filme serve apenas de interrogação de fundo (aliás, confronte-se a sua imagem com a do retrato de Mark Zuckerberg, pai de todos nós, no filme A Rede Social, de David Fincher, mas agora na versão meiga e menos cínica de Spielberg). Esse acréscimo de complexidade poderia advir de algo assim: “Os cabalistas foram os primeiros a compreender que Deus não era nenhum humanista, mas um informático. Não escreve textos, escreve os códigos. Alguém que pudesse escrever como Deus daria ao conceito de escrita um significado que nenhum escritor humano compreendeu até agora. Os geneticistas e os informáticos já escrevem de outra maneira. Também nesse sentido, começou uma era pós-humanista” (Peter Sloterdijk, O Sol e a Morte. Investigações Dialógicas, ed. Relógio D’Água, 2007, p. 111).

Não obstante, o escapismo-motriz do filme é inegavelmente sedutor. À parte a lógica do jogo em si, à parte o vício que devém a única razão de ser de cada um dos habitantes do planeta – o filme em si, enquanto experiência de cinema, ou do cinema como experiência singular, é Spielberg puro. Esse mago da sétima arte que nos pôs diante os olhos a fulguração do espanto, rico em luzes e cores e pulsões insubordináveis, num filme como Encontros Imediatos de Terceiro Grau (1977) (nada se compara àquele clima de antecipação das naves pueris irrompendo o céu noturno no estado de Indiana); ou que revelou a matéria da nossa íntima ternura para amar sem suspeição um alien tão pouco atraente como o do E.T. (1982) – um filme que, pela relação entre a criatura e o pequeno Elliott, figurará para muitos como a consubstanciação cinemática do que é a infância, o próprio da infância captado em filme (e esse próprio da infância é também transmutável numa infância do olhar, extensível aos olhos deslumbrados de Sam Neil e Laura Dern – que desdobram o nosso próprio olhar como espectadores – quando avistam, pela primeiríssima vez, a imensidão de um brachiosaurus a caminhar ao relento, em Jurassic Park, filme pioneiríssimo de 1993 no uso de CGI ao serviço da prestidigitação visual). Ready Player One, pelas razões apontadas, não é um filme que instintivamente emparceire com os que assinam Spielberg como nome maior do cinema, mas não deixa de ter o seu charme, o seu fulgor e de conseguir brilhar com luz própria numa paisagem já tão exauridamente fatiada pelos heróis da Marvel e pelas sequelas das sequelas.

Diogo Martins: Dar Coisas aos Nomes | Cinema | Steven Spielberg, Em busca do tempo perdido

steven spielberg - encontros imediatos do 3º grau - cinema

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Ready Player One, de Steven Spielberg – trailer 

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