Valentim, o místico esquecido padroeiro de namorados e namoradas

Valentim, o místico esquecido padroeiro de namorados e namoradas

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No dia 14 de fevereiro, assinala-se o dia de São Valentim, padroeiro dos namorados e das namoradas, servindo de base ao Dia dos Namorados assinalado em diversos países do mundo. Segundo a tradição cristã católica, Valentim foi um bispo martirizado no tempo do imperador Cláudio II (século III) que contrariou a diretiva imperial de proibição de casamentos. O imperador acreditava que os jovens que não tinham esposa iriam alistar-se no exército imperial com mais facilidade. Valentim continuou a abençoar casamentos, em nome da sacralidade do amor. Contudo, foi descoberto e condenado à morte.

Mas existe outro Valentim, menos conhecido, que foi uma das mais brilhantes figuras do Cristianismo primitivo.

Valentim nasceu na província romana de África, provavelmente no território da antiga cidade de Cartago, por volta do ano 100. A sua formação foi feita em Alexandria, então a segunda maior cidade do Império Romano e uma das metrópoles mais avançadas do mundo, onde confluíam pessoas de todas as culturas e de todas as correntes religiosas e filosóficas do Oriente e do Ocidente. Quando alcançou a idade adulta, tomou a opção de residir em Roma. Dotado de uma capacidade espiritual e intelectual notável, rapidamente alcançou um elevado lugar de proeminência na comunidade cristã da capital imperial.

Na sequência das duas destruições de Jerusalém, em 70 e em 135, a igreja de Roma, foi reivindicando gradualmente um primado, inicialmente honorífico, sobre as demais comunidades cristãs, aproveitando a condição de capital imperial e a sua forte dinâmica caritativa.

Quando faleceu o bispo de Roma, Higino, no ano 140, Valentim, já então com grande prestígio, foi um dos candidatos à sua sucessão, tendo perdido a eleição por uma escassa margem, ultrapassado por Pio, que se tinha destacado na defesa do Cristianismo primitivo contra a prepotência das autoridades romanas. Uma vez eleito, Pio mostrou uma faceta autoritária e dogmática que não foi bem acolhida por uma grande parte da comunidade cristã de Roma. Valentim faleceu em 161, tendo mantido o seu prestígio junto das comunidades cristãs primitivas.

Diversos historiadores, entre os quais Gilles Quispel, Jacob Slavenburg, Elaine Pagels , Hans Kung e Marília Fiorello, veem neste acontecimento um ponto de viragem fundamental no percurso histórico do Cristianismo, com profundas repercussões na História da Humanidade em geral.

Será interessante fazer um exercício de História contrafactual. O que teria acontecido se Valentim tivesse sido eleito bispo de Roma? Provavelmente, teríamos um Cristianismo menos dogmático, mais recetivo à sociedade multirreligiosa existente nos primeiros séculos da nossa era, mais plural, mais centrado na dimensão mística e interior da espiritualidade e consequentemente mais consentâneo com a mensagem de amor, paz e compaixão proclamada e praticada por Jesus. Por outras palavras, uma ortopraxia em vez de uma ortodoxia.

Como místico que era, Valentim enfatizava a centelha divina no interior de cada ser humano, que se despertava pela ressurreição do ser crístico no próprio interior e assim abria o caminho para uma vida nova baseada no amor à Divindade e ao próximo.

Valentim pregava que o ser humano era imortal, porque a sua parte espiritual estava ligada ao Espírito de Deus.

Classificava os seres humanos em três grandes categorias, de acordo com o seu grau de evolução espiritual. Havia os hílicos, indivíduos materialistas, demasiado focados nas coisas materiais. Em seguida, existiam os psíquicos, que procuravam sinceramente a revelação da fé e que procuravam viver de acordo com as prescrições das comunidades eclesiais. Apesar de buscar a fé de uma forma sincera, não tinham a gnose. Por fim, os pneumáticos, os homens e as mulheres que vivenciavam as verdades eternas através da gnose, e como tal, tinham alcançado a união com o Divino, que vibrava no seu próprio ser.

Contrariamente a alguns pensadores cristãos do seu tempo, inclusive gnósticos, Valentim defendia que o lugar do crente era estar presente no mundo, sem no entanto estar dependente das suas ilusões.

A conceção de que o ser humano vive num mundo de ilusão, do qual somente o conhecimento da gnose ou autoconhecimento pode libertá-lo, tem fortes analogias com as ideias de duas grandes religiões do Oriente: o Hinduísmo e o Budismo. É importante ter em conta que no século II existiam importantes relações económicas, culturais e inclusive político-diplomáticas entre o Império Romano e o subcontinente indiano.

Valentim era um indivíduo espiritualmente iluminado. É um dos pensadores cristãos que tinha uma compreensão fundamental da essência da relação entre Deus, o Universo e a pessoa humana, bem como da própria natureza de Jesus.

Seria completamente errado considerar que Valentim diminuiu a importância de Jesus nos seus ensinamentos. A grande devoção e reverência para com Jesus por parte de Valentim são amplamente manifestadas com beleza poética e sublime no Evangelho da Verdade, que na sua forma original, foi escrito por Valentim. Segundo Valentim, Jesus é realmente salvador, mas o termo deve ser entendido na aceção da palavra grega original. Esta palavra grega é “soter”, que significa curador ou doador da saúde, no sentido holístico e espiritual do termo.

Valentim considerava que o mundo e a Humanidade tinham como grande enfermidade a ignorância, mais concretamente a ignorância espiritual.

O papel dos mensageiros espirituais, entre os quais Jesus tinha um lugar de destaque, era curar a Humanidade da sua ignorância, através do acesso à gnose ou conhecimento espiritual.

Na sua mensagem e na sua vida, Valentim manifesta uma espiritualidade que merece ser conhecida pelos seres humanos dos nossos tempos.

 

Imagem de destaque: S. Valentim (vitral; localização e autor desconhecidos; em Epilepsy Society)..

Nota do editor: S. Valentim, para além de padroeiro dos namorados, é também padroeiros dos doentes epiléticos.

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Categorias: Cultura, Ensaio

Acerca do Autor

Daniel Faria

Nasceu em 1975, em Vila Nova de Famalicão. Licenciado em Sociologia das Organizações pela Universidade do Minho e pós-graduado em Sociologia da Cultura e dos Estilos de Vida pela mesma Instituição. É diplomado pelo Curso Teológico-Pastoral da Universidade Católica Portuguesa. Em 1998 e 1999, trabalhou no Centro Regional da Segurança Social do Norte. Desde 2000, é Técnico Superior no Município de Vila Nova de Famalicão. Valoriza as ciências sociais e humanas e a espiritualidade como meios de aprofundar o (auto)conhecimento, em sintonia com a Natureza e o Universo. Dedica-se a causas de voluntariado. É autor do blogue pracadasideias.blogspot.com e da página Espiritualidade e Liberdade.

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