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João Botelho!
Por onde começar era a pergunta que se me impunha. Pensei em entrevistar João Botelho a propósito da sua deslocação a Famalicão, ao Close-up, para a apresentação do filme Peregrinação, baseado no livro de viagens homónimo de Fernão Mendes Pinto. Seria este o artigo de abertura de dossiê em preparação sobre o assunto.
Vida (que começa a ser) longa – 68 anos -, obra extensa – cerca de 30 filmes entre curtas, longas-metragens e documentários. Embora seja um razoável consumidor de cinema, não sou especialista nessa área. Embora seja também um razoável leitor, não sou um literato e confesso que nunca li a obra. Por onde começar afinal?
Dei uma vista de olhos pela internet e não faltavam páginas e páginas de, ou sobre, João Botelho e o seu trabalho. Optei por desligar. O entrevistado não sou eu, é João Botelho. Talvez começar pelo princípio, neste caso o fim, aquilo que o traz à Casa das Artes e a Famalicão, amanhã mesmo, 26 – a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, o filme que realizou a partir desse singular texto.
Assim foi! Assim fizemos. Mas conforme as ideias e pensamentos foram fluindo, as perguntas foram surgindo e acabaram por resultar numa entrevista mais geral e que abarca, para além deste filme, a carreira do realizador, a sua visão do cinema e mesmo a sua maneira de estar e encarar vida.
As mil páginas da Peregrinação são um relato fascinante dessa aventura inigualável [que são os Descobrimentos] pelos sete mares ao encontro do desconhecido.
O mesmo texto nas mãos de dez cineastas dará origem a dez filmes completamente diferentes.
[De entre os filmes que realizei, destaco] Conversa Acabada, porque é o mais radical, onde eu arrisquei mais. Por ser o mais falso, é talvez o mais verdadeiro. (…) É no tempo português que me sinto confortável para expor o que sei do cinema.
Pedro Costa: Porquê a Peregrinação?
João Botelho: Quando Armstrong, o astronauta, pisou o solo da Lua, sendo o primeiro homem a fazê-lo, disse uma frase notável que para sempre ficará: “Um pequeno passo para o Homem, um grande passo para a Humanidade”. Mas também disse que aquele feito só tinha comparação com as viagens extraordinárias dos argonautas portugueses do séc. XV e XVI.
As mil páginas da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, são um relato fascinante dessa aventura inigualável pelos sete mares ao encontro do desconhecido (terras, gentes, plantas e animais) que não pode ser esquecida. Lutar contra a perda de memória, sem a qual a vida não faz sentido, afirmar um texto inigualável, que foi modelo para todos os livros de viagens, e revelar a sua ccontemporaneidade. Na Peregrinação, o bem e o mal, a civilização e a ganância, o fascínio pela descoberta e a crítica impiedosa vão de par. E hoje, não será o respeito pelo “outro”, a coexistência entre o Oriente e Ocidente uma questão fundamental para a salvação da humanidade?
Pedro Costa: Com que dificuldades se confrontou para realizar o filme: argumento, produção, escolha de atores, outras? Em linhas gerais, pode descrever como se desenrolou o processo desde o início do mesmo até à sua conclusão e estreia em sala?
Joâo Botelho: Tantas que é impossível descrevê-las. Refiro duas: A primeira, e principal, foi a escolha dos episódios: o que fica, que se deixa de lado, mantendo a coerência, sem apoucar uma obra grandiosa? Levou-me quase um ano a ler e a reler, a escolher! Outra, secundária, mas não menos importante: como filmar no porto palafítico da Carrasqueira (Alentejo) os portos de Lampacau e de Pantane? Figurantes timorenses a fazer de malaios, figurantes da comunidade chinesa de Lisboa em trapos do séc XVI. E uns filmados na contra-luz, e outros na luz, e a mesma caravela, a Vera Cruz, pousada ao fundo nas águas do Sado!
Pedro Costa: O João é muito crítico consigo mesmo? Costuma ver e rever o seu trabalho? Depois da obra concluída, é capaz de olhar para ela e pensar ainda que teria feito diferente e mudava este ou aquele pormenor ou escolha feita por outra?
João Botelho: Dois anos de trabalho intenso. Filmar foi mais rápido porque a preparação foi longa. Volto a afirmar que o cinema não é o que se passa, nem quando se passa, mas como se filma. O mesmo texto nas mãos de dez cineastas, garanto-vos, dará origem a dez filmes completamente diferentes. O cinema apesar do trabalho coletivo de muitos atores e de muitos técnicos é, no final, o resultado de um ponto de vista. E a minha Peregrinação é o meu ponto de vista, acumulação de um trabalho de mais de 30 anos sobre imagens e sons.
Pedro Costa: O filme estreou em novembro passado. A recetividade do público e da crítica tem sido boa, tem correspondido às suas expectativas?
João Botelho: Claro, nunca estarei satisfeito. É sempre possível fazer melhor, mas quando um filme sai para o domínio do outro, deixa de ser meu e não há nada a fazer. No próximo corrigirei os erros, penso eu, e essa vontade anima a alma e o pensamento. Sabiam que a felicidade é a capacidade de, sem muito ceder nas convicções, nos adaptarmos às circunstâncias?
Pedro Costa: Por que razão estreou o filme num teatro, o Teatro Nacional de São João, e não numa sala de cinema?
João Botelho: No Teatro São João, do Porto, e na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Como todos sabem, nos espetáculos de teatro ainda se mantêm e se aceitam as regras de não comer, de não beber e de se desligarem os telemóveis para uma serena comunhão coletiva de, numa sala às escuras, ver e ouvir um espetáculo. Assim, a representação dos seres humanos ou da natureza no ecrã, entre luzes e sombras, pode acontecer sem influências estranhas. Ver e o ouvir é o cinema, e as emoções dos espectadores, seja o entusiasmo ou o tédio, serão verdadeiras diante da “falsidade” que é projetada.
Podia ser bem melhor. Hoje os adultos deixaram de ir às salas de cinema, onde se come, bebe, se faz barulho e se trocam mensagens de telemóveis. O cinema cumpre, infelizmente, o seu destino trágico, um círculo que se fecha. Começou nas feiras como divertimento e acabou nos centros comerciais como divertimento! O cinema-divertimento derrotou de vez o cinema-pensamento; e eu sei a razão. Um exibidor pode ganhar um ou dois euros dos sete que custa o bilhete, mas ganha 7 euros na coca-cola e nas pipocas! Então que se coma e que se beba. Tenho grandes dificuldades em fazer filmes para essas condições.
Pedro Costa: O João Botelho tem tido ao longo da sua carreira uma relação especial com a Literatura. Antes deste realizou diversas outras adaptações de textos de autores portugueses: Conversa Acabada, Livro do Desassossego, Os Maias. De entre todos quer destacar um e invocar as suas razões para o ter feito? É porque lhe deu muito gozo fazê-lo, porque o considera uma obra mais pessoal e intimista ou por qualquer outra razão?
João Botelho: Talvez o primeiro, a Conversa Acabada, porque é o mais radical, onde eu arrisquei mais. Por ser o mais falso, é talvez o mais verdadeiro. O modernismo português no seu esplendor! Talvez o Filme do Desassossego, a partir do romance de Bernardo Soares / Fernando Pessoa, o mais estranho, belo e maior texto do século XX em Portugal, porque ao mesmo tempo sendo fragmentário e coerente, me permitiu expor muitas das coisas que eu penso do cinema. O triunfo da metonímia sobre a metáfora, a montagem de atrações, o reino da luz e das sombras, a composição sobrepondo-se à ação, a ideia do tempo cinematográfico que nada tem a ver com o tempo da vida. Uma coisa e uma outra, ligadas em sucessão, em que o e não se filma nem representa, em que é figura cinematográfica fundamental e preciosa. Não se vê, não se ouve, mas está lá e triunfa!
Pedro Costa: Uma vez que tanto aprecia relacionar o seu trabalho com a Literatura, e sem de todo menosprezar o valor dos nossos escritores, em particular os atrás referidos, por que nunca se debruçou sobre um dos romances maiores: O Monte dos Vendavais ou Lolita, por exemplo, ou até algo mais contemporâneo, como Na Praia de Chesil, do McEwan, ou o Meridiano de Sangue, do Cormac McCarthy? O que é que a nossa Literatura tem de especial nessa sua relação com o cinema?
João Botelho: O Cinema não é a literatura, é outra e diversa coisa. O cinema rouba a literatura, como rouba a pintura, o teatro, a música e outras artes mais nobres. É uma atividade de vampiros, mas por vezes os vampiros não são maus. E também, por vezes, não são precisas grandes obras literárias para se fazerem bons filmes. Um romance menor, Os 39 Degraus permitiu a Hitchcock realizar três filmes maravilhosos, filmes maiores. Outra verdade é que, se eu filmar a minha rua, quase de certeza que a filmo melhor do que se filmar uma rua de Madrid ou de Paris. Porque conheço a minha rua há muito mais tempo. Para além dos filmes que citou atrás, ainda adaptei Almeida Garrett (Quem és tu?) e Agustina Bessa-Luís (A Corte do Norte), obras portuguesas que eu amo. Mas também adaptei Dickens (Tempos Difíceis), de quem Eisenstein afirma ter sido o inventor da linguagem cinematográfica muito antes do cinema ter acontecido. E Diderot (O Fatalista), mas transferido para a realidade portuguesa. Num e noutro, a luta de classes e as relações patrão-servo são afirmadas como motor decisivo de progresso na sociedade.
Mas, na verdade, é no tempo português que me sinto confortável para expor o que sei do cinema: a composição, mais importante do que a ação, as matérias complexas que envolvem a criação cinematográfica mostradas, e não escondidas, a distância entre o espectador e o ecrã sempre revelada (ninguém pode saltar para dentro do ecrã nos meus filmes!), em que um plano é um plano e um som é para se ouvir, em que a inquietação será sempre mais forte do que o conforto, em que a representação dos seres humanos entre as sombras e a luz será sempre representação da vida e nunca a ilusão da vida.
Pedro Costa: O que o fez enveredar por uma carreira no cinema? Entrou no cinema pela porta da realização ou desempenhou outros papéis antes disso? O João Botelho é um realizador muito ativo. Realiza habitualmente um ou mais documentários entre as suas longas-metragens. De que modo diferem as suas abordagens aos dois tipos de cinema (filme?)?
João Botelho: Carreiras são os autocarros, ou as camionetas, desculpe a brincadeira. Mas vim para o trabalho no cinema (as pessoas estão na terra para fazer coisas) porque o 25 de Abril, para mim, foi uma catástrofe maravilhosa que me fez mudar a vida. Estava a acabar engenharia mecânica, dava aulas na Escola Técnica de Matosinhos e fui para a escola de cinema do conservatório nos finais de 1974! Antes disso, era apenas cinéfilo, isto é, viciado em ver filmes, como alguém que é viciado em tabaco e em café, o que é também verdade para mim ainda hoje. Agora uma sentença: um bom filme de ficção arrasta necessariamente a ideia de documentário, e um documentário igualmente trás em si um filme de ficção, porque ambos são sempre uma escolha, a minha escolha, uma manipulação do real. Designados por ficção ou documentário são cinema e não filmes. Filmes são histórias, cinema é modo de filmar as histórias.
Pedro Costa: O João Botelho terá certamente as suas preferências e influências cinematográficas. Quais são, e porquê, os seus realizadores e filmes preferidos?
João Botelho: Muitas. E vou citar algumas. Acima de todos, John Ford, que dizia que só mexia a câmara quando os cavalos galopavam porque não queria distrair os espectadores do essencial. Jean Renoir, porque ainda hoje está para lá da compreensão humana. E por fim, todos os “ascetas”: Dreyer, Ozu, Bresson e o pai do cinema em que eu me meti: Rossellini. Dois filmes: Young Mr. Lincoln, de Ford, e The River, de Renoir. E mais umas centenas; ou milhares.
Pedro Costa: Vai ter perante si uma plateia de jovens a assistir à sua apresentação e ao filme. Não sei se outras escolas estarão presentes, mas a Escola Secundária Camilo Castelo Branco estará certamente, uma vez que tem um Curso de Audiovisuais. Para si, esta interação com os jovens, e em particular de potenciais futuros técnicos de cinema, tem algum caráter especial?
João Botelho: O cinema em Portugal é extraordinariamente precário. E se não houvesse apoio do Estado, ele desapareceria. Como a música, a ópera, o bailado, etc. Um país sem arte é um caixote do lixo. Então sinto-me na obrigação de devolver esse apoio fazendo uma espécie de serviço público. E não ensinando nada como dogma. Mostrar aos mais jovens que o cinema não é uma coisa única, que há centenas de modos de filmar, que há uma história do cinema (que o cinema não começou com os filmes do Tarantino, mas mais de cem anos antes!) e sobretudo, como pedia Hitchcock aos seus alunos, que nunca se deviam deixar prender às ideias dos outros, que afirmem só e filmem só o que lhes vai na cabeça e no coração. E nunca filmem para ninguém, mas apenas para si e o melhor que souberem para depois, e só depois, mostrar ao maior número de pessoas.
Pedro Costa: Para terminar, se o João Botelho não fosse realizador de cinema, ou não o tivesse sido, o que gostaria de ser ou ter sido? Vê-se a calçar as pantufas e a deixar o cinema de lado um dia?
João Botelho: Treinador de futebol que era muito mais rentável! Deixar o cinema é possível, mas nunca calçar as pantufas. Antes voar de uma alta ponte para um rio de águas não muito frias e talvez morrer ou nadar até à foz!
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Imagens: DR
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Sou Deana Barroqueiro, escritora de romance histórico. e venho informar que João Botelho não conhece a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto. Ele usou como guião do seu filme o meu romance O Corsário dos Sete Mares, o 3º volume da minha trilogia dos Descobrimentos. O seu desconhecimento da obra de Pinto é tal, que o cineasta tem feito passar nos “media”, as inúmeras cenas que usou do meu romance (todas as da China, como a própria produção já reconheceu por escrito)e que foram inventadas por mim, como se fossem da obra renascentista. E para essa adaptação esqueceu-se de pedir autorização, tanto à autora como à editora Casa das Letras/Leya. E os jornalistas que também desconhecem as duas obras têm publicitado alegremente o plágio.
Com os melhores cumprimentos
Deana Barroqueiro