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Vítor Ribeiro, diretor do Cineclube de Joane e programador cultural, reflete sobre a obra de Abbas Kiarostami, autor a ser apresentado na primeira réplica do segundo episódio Close-Up, A Viagem. Como bónus adicional, complementa este texto a curta-metragem Cinco para Kiarostami realizada por Mário Macedo e o próprio Vítor Ribeiro em torno da obra do consagrado realizador.
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Abbas Kiarostami nasceu em 1940, em Teerão. Licenciou-se em Belas Artes e trabalhou como designer gráfico e ilustrador antes de enveredar pela carreira de realizador de cinema, inserido na Nova Vaga do Cinema iraniano, que eclodiu no final dos anos 60. Foi um dos fundadores, em 1969, do Departamento de Cinema no Instituto para o Desenvolvimento Intelectual de Crianças e Jovens, onde concretizou as suas primeiras curtas-metragens, de teor didáctico, entranhadas no universo da infância, o que haveria de produzir ecos na sua obra posterior.
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Trilogia do Terramoto
A obra de Kiarostami seria exposta ao mundo no Festival de Locarno, em 1989, com Onde Fica a Casa do Meu Amigo?. Ahmad, um rapaz, quando faz os trabalhos de casa, percebe que trouxe o caderno de um colega por engano. Com receio que o amigo seja castigado, Ahmad foge da mãe e parte à procura do amigo nas povoações vizinhas. Ao longo da sua demanda, vamos sendo confrontados com as vivências das populações. A primeira parte da trilogia difunde, desde logo, alguns dos temas da sua obra: o interesse pelo real, a ideia de percurso que conduz a narrativa, a presença de personagens obsessivas, determinadas, muitas delas crianças. Em 1990, um terramoto devastou o norte do Irão, na região onde Kiarostami rodara Onde Fica a Casa do Meu Amigo?. Os relatos referiam que cerca de 95% da população estaria sob escombros, resultando em mais de 50.000 mortos. Três dias depois, Kiarostami, com o filho, parte em direcção a Koker, à procura das crianças que tinham protagonizado o seu filme, mas não as conseguiu encontrar. Nessa semana, Kiarostami apresentou, no Festival de Munique, Onde Fica a Casa do Meu Amigo?.
No regresso, decidiu escrever um argumento inspirado na sua demanda pela região destruída. E A Vida Continua… (1992) é, então, um registo de uma ficção sobre uma base documental: dois personagens, um adulto e uma criança (representando Kiarostami e o filho), inseridos na zona devastada pelo terramoto, cinco meses após a ocorrência. Perante a destruição, mas, simultaneamente, perante o entusiasmo dos sobreviventes que a obra de Kiarostami captura, encontramos outro dos seus assuntos de eleição: o confronto entre a vida e a morte. Surge, também, o dispositivo do automóvel em movimento, como lugar de acção, como transporte de ficção, que Kiarostami constituirá como imagem de marca e que elevará, em obras seguintes, a progressivos níveis de sofisticação.
Devido a este interesse inequívoco de Kiarostami pelo real (a apresentação de um Irão rural), a sua obra foi, neste contexto, identificada e comparada com o neo-realismo, com Rossellini como influência maior. Kiarostami era olhado, portanto, de forma redutora, como um retratista, um humanista, como que expressando a transparência (documental, fotográfica) das teorias de André Bazin. Nas suas obras posteriores, e até do mesmo período (Close-Up (1990)), Kiarostami encarregar-se-ia de sabotar esta filiação, apresentando-se como um cineasta manipulador, em que a ficção e o real, a verdade e o embuste se apresentam e se envolvem em estratos indivisíveis. O filme que fecha a trilogia, Através das Oliveiras (1994), foi apresentado na competição do Festival de Cannes. Uma equipa de cinema chega a uma pequena cidade no norte do Irão, devastada por um tremor de terra, para realizar um filme denominado “E a Vida Continua”. Hossein, um jovem pedreiro, é contratado para integrar a equipa e acaba por interpretar um pequeno papel no filme. Por coincidência, a actriz que contracena com ele é Farkhondé, uma jovem vizinha por quem Hossein está apaixonado, mas a quem os pais tinham recusado o casamento antes da catástrofe (os pais de Farkhondé morreram entre os escombros). Mas a avó continua a opor-se ao casamento, uma vez que Hossein não tem casa própria. O apaixonado insiste: “Agora ninguém tem abrigo, somos todos iguais”. E continua assim a perseguir a sua amada, para obter uma resposta. O tema é a rodagem de um filme, de um filme que Kiarostami tinha concretizado (E A Vida Continua…) a partir de uma demanda relacionada com outro filme Onde Fica a Casa do Meu Amigo?. Em Kiarostami, o seu último filme está sempre ligado ao(s) anterior(es), a obra é apresentada como reacção à obra precedente, como demonstração de reflexão aliada à ficção, no cruzamento com o real, com pessoas (actores) que se confundem com personagens (e as suas representações) e locais com cenários. Tal como em E A Vida Continua… não é possível verificar se o realizador encontrou os seus actores, em Através das Oliveiras não há desfecho para a paixão entre Hossein e Farkhondé: a narrativa começa a apresentar omissões, característica que Kiarostami explorará posteriormente de forma obstinada.
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Close-up: A Verdade da Mentira
Em fase de pré-produção de Dinheiro no Bolso, mais um filme em volta do universo infantil, Kiarostami leu um artigo numa revista sobre um homem, Sabzian, que estava preso por fraude, acusado de se ter feito passar pelo realizador Makhmalbaf junto de uma família. Kiarostami ficou especialmente impressionado por uma frase que o homem proferira numa entrevista: “Doravante sou um pedaço de carne de um animal que não tem cabeça e podem fazer de mim o que quiserem.” Nos dias seguintes, Kiarostami foi sendo perturbado por aquela frase, que não lhe largava o pensamento. Kiarostami abordou o produtor Ali Reza Zarrin no sentido de alterar o filme sobre o qual incidiria o financiamento, ao que o produtor terá acedido, seduzido pelos argumentos do cineasta. Foi, então, deste episódio que brotou Close-up (1990), um dos objectos mais singulares e desconcertantes do cinema contemporâneo, um filme que questiona um conjunto de enunciados relacionados com a distinção entre verdade e encenação, ao colocar os intervenientes da fraude a interpretarem-se a si próprios, usando ambiguamente as linguagens do documentário e da ficção, o que permitiu a Kiarostami dialogar com o real, e no limite, promover-lhe alterações, reconfigurando a realidade e a verdade.
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O Sabor da Cereja: o olhar do espectador constrói o filme
Em 1997, Abbas Kiarostami ergueu uma das suas obras máximas: O Sabor da Cereja, Palma de Ouro em Cannes. A propósito da sua motivação para fazer filmes, o cineasta iraniano afirmou em entrevista: “o cinema já não é um meio de contar histórias. (…) Não é – não pode ser – a manipulação das emoções do público. (…) Às vezes, os indícios são suficientes, e o cinema contenta-se em dar indícios ao espectador mais do que deseja mostrar tudo. O cinema que me interessa consiste em persuadir o espectador. (…) O realizador só pode levantar questões, e é o público que deve procurar as respostas, deve ter a oportunidade para reflectir, para completar a parte que falta do trabalho. Sendo assim há tantas versões de um mesmo filme como de pessoas que assistem à sua projecção. Na minha opinião, o cinema e todas as artes devem poder modificar a opinião do público de forma a que ele rejeite os valores antigos e fazê-lo pensar noutros.”
O filme apresenta-nos Badii, um homem de 50 anos que percorre com o seu jipe as estradas dos arredores áridos e em transformação de Teerão, firme na decisão de se suicidar e procurando alguém que, a troco de dinheiro, lhe feche a cova num sítio já definido. A partir de um dispositivo simples, pontos de vista no interior do veículo, campo/contra-campo entre o condutor e o passageiro, cortados por planos do exterior enquadrados pelos vidros do veículo ou com o serpentear do jipe diluído na amplitude da paisagem em plano de conjunto e com o registo sonoro do que os personagens vão dizendo no interior, Kiarostami, através de uma narrativa deliberadamente omissa, convida o espectador a participar na estruturação do filme, através da imaginação e da reflexão. Sem nunca expor a razão que levou Badii ao suicídio, pelo veículo do protagonista, que funciona como um misto de espaço público e privado, de viagem pela História e pelas tradições daquela região do globo, vão passando os vários candidatos à função que nos referimos: um jovem soldado, um seminarista e um taxidermista; através dos diálogos, muitas vezes em conflito, vão sendo colocadas questões que promovem a participação do espectador, que o fazem meditar na vida e na morte, na legitimidade do suicídio: o resultado nunca é explícito, concreto, a obra enche-se de teor poético, com a vastidão da paisagem a contribuir para a abertura da narrativa e da sua interpretação. E no último plano, o cineasta iraniano desfere a machada letal sobre a ideia de realismo em volta do seu cinema ao apresentar-se, numa imagem granulada e matizada, característica do vídeo, a dirigir uma cena, lado a lado com o protagonista, Homayoun Ershadi; Kiarostami clama, então, bem alto “Isto é um filme!”: um cinema humanista, capaz de falar com o público, sem abdicar do arrojo da linguagem, em constante questionamento.
O sabor da cereja será exibido na Casa das Artes de Famalicão a 27 de Janeiro, às 15h00, incluído na primeira réplica do segundo episódio do Close-up – Observatório de Cinema de Famalicão.
O Observatório de Cinema colheu a sua designação no filme Close-up de Kiarostami, sendo a sua concepção fortemente influenciada pela sua obra, tendo resultado na produção de um filme-homenagem que foi exibido na sessão de abertura do 1.º episódio (27 de Outubro de 2016).
O filme Cinco para Kiarostami, de Mário Macedo e Vítor Ribeiro, pode ser visto aqui:
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Imagem de destaque: Abbas Kiarostami – O sabor da cereja (1990) (em Musa Syeed )
Outras imagens:
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