História, cultura, património e inovação das azenhas, moinhos e açudes no Vale do Ave: Origem (Séc. I a.C. – IV)
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Azenhas, moinhos e açudes no Vale do Ave
Ainda está por apurar a origem dos moinhos hidráulicos no Vale do Ave. (…)
Sabemos que a moagem de cereais era um processo utilizado pelo homem já no período Neolítico. Nos diversos castros e cividades da região – (…) Penices em Vila Nova de Famalicão (…) – foram encontradas peças destinadas à moagem de sementes e grãos.
Nos principais rios do município de Vila Nova de Famalicão (Ave, Este, Pelhe e Pele) existe um vasto património molinológico com vários séculos de existência que representa diversas indústrias tradicionais relacionadas com a moagem de cereais, a maceração do linho, o pisoar dos panos, a serração de madeira, a produção de azeite, o fabrico de cartão, entre outras. Apesar de existirem referências documentais que mencionam a existência de azenhas e moinhos em Vila Nova de Famalicão no século XIII, no reinado de D. Afonso III e D. Dinis, ainda está por apurar a origem dos moinhos hidráulicos no Vale do Ave. Com base em estudos arqueológicos e históricos desenvolvidos em diferentes locais da Europa, incluindo Portugal, pretende-se com este artigo questionar a origem cronológica dos moinhos hidráulicos no Vale do Ave.
Segundo diversos autores, nacionais e internacionais, os moinhos hidráulicos aparecem na civilização Europeia durante o séc. I a.C., destinando-se em primeiro lugar à moagem de cereais para produção de pão, e posteriormente para outras funções. Um epigrama de Antípatro de Salónica datado do ano 85 a.C. descreve a implementação do moinho hidráulico:
“Cessai de moer, ó mulheres que trabalhais no moinho; dormi e deixai os pássaros cantar à aurora cor de sangue. Ceres ordenou às ninfas aquáticas que desempenhassem a vossa tarefa, e elas obedientes à sua ordem, correm sobre a roda, e fazem girar o eixo por meio das palas que o rodeiam, e, com ele as pesadas mós”.1
No mesmo século, no tratado De Architectura, Livro X, Capítulo V surge o primeiro projeto “tipo” de uma azenha, cuja designação romana é Hydraletae, elaborado pelo Arquiteto Romano Marcos Vitrúvio Polião:
“Azenhas – […] Disposto na vertical, em cutelo, esse tambor gira a par com a roda. Igualmente dentado, está montado junto dele um tambor maior, disposto na horizontal, com o qual se encaixa. Deste modo, gera-se necessariamente a rotação das mós ao porem-se em movimento os dentes do tambor horizontal com os dentes do tambor que rodeia o eixo. Pendente de cima deste engenho, uma tremonha fornece às mós cereal que, com a mesma rotação, se transforma em farinha.”2
Estudos arqueológicos recentes, do final do séc. XX, realizados em Itália, nomeadamente em Saepinum e Roma, revelaram a existência de azenhas que funcionaram no séculos III e V. Em Saepinum, a azenha, datada de meados do séc. III, foi construída sobre uma casa pátio do séc. I. Era acionada por uma roda vertical com 2,2m de diâmetro (fig. 1) 3
Em Roma, associadas ao Aqueduto de Trajano, existiram azenhas que aproveitavam a água do Aqueduto para a moagem de cereais, e, eventualmente, esmagar azeitonas. Este complexo molinológico era composto por cinco rodas verticais, sendo que quatro tinham cerca de 2,30m de diâmetro e uma possuía 3,2m de diâmetro (fig. 2). Estas azenhas deixaram de funcionar entre o final do séc. IV e início do séc. V.
No Sul de França, a 7Km de Arles, foram encontrados vestígios arqueológicos que correspondem a um conjunto monumental formado por 16 azenhas (fig. destaque, 3 e 4), datadas da época do Imperador Trajano, destinadas a produção de farinha para abastecimento da cidade de Arles.4
“A instalação representaria um excelente exemplo de arquitectura industrial. Segundo Benoit, esta instalação não teria correspondido a uma tentativa isolada, antes seria o resultado de um sábio conhecimento e de múltiplas aplicações. A sua concepção implica tradição e longa experiência.”5
Em Portugal existem referências arqueológicas de azenhas e moinhos durante o período de ocupação romana. Nélson Borges refere a existência de uma azenha em Conímbriga e um moinho de rodízio em Beja que funcionariam durante a época luso-romana.6 Além destes casos, são apontados como presumíveis moinhos hidráulicos romanos – a azenha da Barragem de Chocapalhas, em Tomar, no distrito de Santarém; o moinho de rodízio de Tanque de Mouros, em Estremoz, no distrito de Évora, e o moinho de rodízio da Barragem de Grândola, no distrito de Setúbal.7
No que diz respeito ao Vale do Ave, sabemos que a moagem de cereais era um processo utilizado pelo homem já no período Neolítico. Nos diversos castros e cividades da região – Bagunte em Vila do Conde; Penices em Vila Nova de Famalicão e Briteiros em Guimarães – foram encontradas peças destinadas à moagem de sementes e grãos como, por exemplo, as mós planas e rebolos. Na Idade do Ferro, nos mesmos castros, aparecem mós discoides manuais, que, ao que tudo indica, foram introduzidas pelos Romanos para produção de farinha.
Segundo Abbott Usher, após o uso mecânico da força animal surgiu a exploração dos recursos naturais – a energia da água – e assim surgem os moinhos hidráulicos como processo evolutivo da tecnologia mecânica.8 Existiriam então azenhas e moinhos no Vale do Ave durante o período de ocupação Romana? Como se efetuava a moagem dos cereais armazenados nos Silos das Villae Romanas implantadas no Vale do Ave?
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Bibliografia:
1 OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando; PEREIRA, Benjamim. Tecnologia Tradicional Portuguesa – Sistemas de Moagem. Etnologia 2, INIC – Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de Estudos de Etnologia, Lisboa, 1983.p. 69.
2 VITRÚVIO, Tratado de Arquitectura. Tradução do Latim, Introdução e Notas de M. Justino Maciel, Ilustrações Thomas Noble Howe, IST PRESS – Instituto Superior Técnico, Lisboa, 2006, p. 375.
3 BRUN, Jean Pierre. «Les moulins hydrauliques en Italie romaine» in Énergie hydraulique et machines élévatrices d’eau dans l’Antiquité [em linha]. Nápoles: Publications du Centre Jean Bérard, 2007, (consultado em 17 Fevereiro de 2017). Disponível no sitio web: http://books.openedition.org/pcjb/436.
4 LEVEAU, Philippe. «Les moulins de Barbegal 1986 – 2006» in Énergie hydraulique et machines élévatrices d’eau dans l’Antiquité [em linha]. Nápoles: Publications du Centre Jean Bérard, 2007, (consultado em 17 Fevereiro de 2017). Disponível no sitio web: http://books.openedition.org/pcjb/434.
5 QUINTELA, António de Carvalho; MASCARENHAS, José Manuel; CARDOSO, João Luís. «A Instalação Hidráulica de Moagem de Barbegal e o seu Presumível Engenheiro-Construtor» in Ingenium Revista da Ordem dos Engenheiros, Junho de 1992, p. 48.
6 BORGES, Nélson Correia. «A farinação Através dos Tempos – 3» in História. Luis Almeida Martins (Dir.); Nº 29, Publicações Projornal, Lisboa, Março, 1981, pp. 66-74.
7 CARDOSO, João Luís; CARVALHO, António de; MASCARENHAS, José M.. «Moinhos Romanos em Portugal» in AquaRomana – Técnica Humana e Força Divina. Isabel Rodà de Llanza (Dir.); Lavínia Mayer (Coord.); Museu de les Aigües de la Fundació Agbar, 2004, pp. 139-145.
8 USHER, Abbott Payson. História das Invenções Mecânicas. Vitorino Magalhães Godinho (Dir.), Maria Ludovina Couto (Trad.), Vol. 1, Edições Cosmos, Lisboa, 1973, [1ª Ed. 1929].
Imagem de destaque: Reconstituição volumétrica do conjunto arquitetónico formado pelas 16 Azenhas de Barbegal, Arles, França; Autor: Stephen Ressler; Consultado em 16/10/2017 no sitio web http://stephenjressler.com/portfolio/roman-mill-complex-at-barbegal/
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